Quando uma relação se torna surpreendentemente estranha, como distinguir entre realidade e fantasia?
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O relógio marcou onze horas e ele nada. Ela já estava ficando preocupada. Ele nunca havia demorado tanto desde o dia em que se casaram. O telefone do escritório estava mudo. Ela ligou, mas ninguém atendeu. Andava de um lado para o outro do quarto, fumando o último cigarro do maço quando ouviu o barulho da chave na porta da sala. Ele trancou a porta, passou pela sala e entrou no banheiro social. Ela ficou parada, olhando pela porta, preparada para indagar, interrogar, xingar talvez. Ouviu o som da urina caindo no vaso. Vai ver ele bebeu muita cerveja, pensou. Ele deu a descarga, apagou a luz e veio para o quarto. Os dois ficaram estáticos, olhando um para o outro, ambos surpresos. Ela pensou em gritar, pedir socorro, mas temeu que ele cometesse algum ato de violência. Permaneceram em silêncio por um instante, até que ele arriscou:
– Quem é você?
– Eu? - disse ela.
– Você... O que está fazendo aqui?
– Estou na minha casa.
– Sua casa? Quem mora aqui sou eu. Eu e minha mulher. Aliás, onde é que ela está?
– Eu é que vou saber? Deve estar na sua casa, onde mais?
– Mas este é o meu apartamento. O meu lar. Este é o meu quarto e aquela é a minha cama.
– Sua cama?
A conversa continuou sem nenhum sentido. As palavras pareciam vazias para ambos, sem significado algum. É um absurdo - pensava ela. Mas ele se comportava com total naturalidade, como se fosse realmente o dono da casa.
– Vê? Este é o meu guarda-roupa. E aqui estão meus ternos, minhas camisas... Daquele lado ficam as roupas da minha mulher.
– Minhas roupas...
Ele ficou embaraçado, pois ela parecia mesmo ser a dona da casa e demonstrava total intimidade com o ambiente, principalmente dentro daquela camisola de seda preta, que parecia ter sua medida exata.
– Aqui estão as minhas saias, meus vestidos e blusas - disse ela, abrindo o outro lado do guarda-roupa.
Ele sentou-se na cama e passou as mãos pelo rosto até os cabelos. Tentava buscar uma explicação satisfatória para o que estava acontecendo, mas por mais que se esforçasse não conseguia. Havia bebido um pouco, é verdade, mas não o bastante para delirar. Ela então percebeu que ele estava tão confuso quanto ela mesma e resolveu aliviar toda aquela tensão provocada pelo inusitado incidente.
– Você tem um cigarro?
– Eu não fumo.
– Meu marido fuma.
– Mas eu não sou seu marido.
Voltaram à questão anterior e ela ficou ainda mais preocupada, pois se o marido chegasse de repente em casa e a encontrasse com um estranho sentado em sua cama, o casamento certamente iria por água abaixo. No mínimo ele aprontaria um escândalo.
– Vamos por etapas - o estranho sugeriu. - Você descreve o seu marido e eu descrevo a minha mulher. Vai ver um de nós dois confundiu o apartamento e o outro possa ajudá-lo a encontrar o endereço certo? Esses conjuntos residenciais são tão parecidos, não acha?
– Bloco B - ela disparou.
– Bloco B?
– É. Bloco B, apartamento 203. É onde eu moro.
– Mas é exatamente o meu apartamento.
Aí a coisa ficou mais confusa ainda. Pior foi quando ela tentou falar sobre o marido e descobriu que não conseguia se lembrar exatamente como ele era.
– Não se lembra da cara do seu próprio marido?
– Acho que não.
– Quem sabe eu posso ajudar? Ele é louro ou moreno?
– Não sei. Não me lembro.
– E o nome dele?
– O nome?
Piorou de vez. Ela também não sabia o nome do marido. Não se lembrava de nada que lhe dissesse respeito.
– Você deve sofrer de amnésia. Não se lembra de coisa alguma e entrou no apartamento errado. Pode ser só uma crise de estresse. Pior é se a minha mulher encontra você aqui a esta hora e de camisola.
– Sua mulher!
– O que tem ela?
– Como é que ela é? Como se chama?
Ele se esforçou e então percebeu que também não sabia nada sobre a própria esposa.
– Ela é loura ou morena? Magra ou gorda?
Ele realmente não se lembrava. Nem do nome, nem do rosto, nem mesmo da cor dos cabelos. Pensou em consultar a aliança onde certamente o nome estaria gravado, mas se lembrou de que a deixara trancada numa gaveta da mesa de trabalho.
– Sua aliança.
– O que tem a minha aliança? - ela quis saber.
– Deve ter o nome do seu marido.
– Ah, sim, a aliança. Bem, eu não uso aliança.
– Não usa aliança?
– Eu a perdi há uns dois ou três meses. E a sua, onde está?
– Eu a deixei na gaveta da minha mesa, lá no escritório. É meio apertada e com esse calor me incomoda muito - disse ele, afrouxando a gravata.
– Você precisa ir buscá-la. Temos que resolver esse assunto o quanto antes.
– Mas o prédio onde eu trabalho já deve estar trancado. Só vai abrir amanhã, às sete e meia.
Os dois se angustiaram ainda mais. Ele então saiu do quarto e se dirigiu à cozinha. Ela foi atrás, exigindo que ele fosse embora.
– Ir embora, eu? Mas este é o meu lar... Comprei estes móveis, pago o aluguel. Você é que é a intrusa.
– Intrusa, eu?
Ele colocou um copo de vidro sobre a pia e pegou a garrafa de café. Percebeu que estava vazia.
– Não tem café?
– Claro que não. Eu não fiz.
– Não fez café? Mas que tipo de esposa é você, afinal? Seu marido chega cansado do serviço e não encontra um café quentinho?
– Só faço café pela manhã e bebo tudo sozinha. Meu marido detesta café.
– Ah, disso você se lembra, não é?
– É, você tem razão. Disso eu me lembro.
– Não faz mal, pois eu adoro café.
– E acha que eu sou sua empregada para fazer café a uma hora dessa? Olha, cara, por que é que você não vai dormir num hotel? Amanhá você volta e a gente esclarece tudo isso.
– Eu, dormir num hotel? Nunca, minha filha.
Foi então que ele teve uma idéia que considerou interessante. Sugeriu que ela buscasse o álbum de retratos. Assim, ela se lembraria do marido.
– Não está aqui - disse ela.
– Não está? Mas como não?
– Emprestei pra minha mãe e ela ainda não devolveu.
– E a certidão de casamento?
– A certidão? Nossa, a certidão... Ela foi junto, é que eu guardo ela dentro do álbum.
Ele se lembrou de onde ficava o seu álbum de fotografias e correu para o quarto, sendo seguido por ela.
– O que você tá procurando?
– Vou provar que este é o meu apartamento e que foi você quem errou de endereço.
Revirou as gavetas da cômoda.
– Não adianta procurar - ela disse. - Eu emprestei pra minha mãe.
– Não estou procurando o seu álbum de retratos e sim o meu. Meu e de minha mulher.
Não encontrou nada e começou a pensar na possibilidade de estar vivendo um pesadelo. Beliscou o próprio rosto diante do espelho e confirmou que não estava sonhando.
– Não pode ser - suspirou. - Uma coisa dessas não acontece nem no cinema. Alguma coisa está errada ou um de nós enlouqueceu.
– Claro que tem algo de errado, mas se alguém enlouqueceu esse alguém é você.
– Você ainda não me disse o seu nome.
– Sônia. E o seu?
– Eu me chamo Walter.
– Muito prazer.
Apertaram as mãos e ficaram sentados na cama, em silêncio, completamente amuados.
– Minha mulher não se chama Sônia, disso eu tenho certeza. Eu acho...
- Eu também não conheço nenhum Walter.
– Tem certeza de que não se lembra do nome do seu marido?
– Absoluta.
Ela sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo e começou a chorar. Ele acabou abraçando-a, ternamente.
– Ora, ora, mas o que é isso? Também não precisa ficar assim.
– Alguma coisa está errada com a gente e não conseguimos saber o que é - ela soluçou.
Ele acariciou os cabelos negros e longos.
– Talvez um simples telefonema possa resolver o caso - sugeriu.
– Telefonema?
– É. Liga pra sua mãe e pergunta o nome do seu marido, como é que ele é...
– Mamãe não tem telefone e se tivesse eu não ligaria. Ela ia pensar que eu fiquei maluca.
Ela chorou novamente.
– Calma, isso não adianta.
– E você, por que não liga para alguém?
– Pelo mesmo motivo. Vão pensar que eu endoidei de vez.
– E se chamássemos os vizinhos?
– A uma hora dessa? Tá maluca? E o que iríamos dizer a eles?– Meu Deus, o que vamos fazer?
– Eu acho que você tem razão. Melhor eu ir para um hotel.
– E eu vou ficar sozinha?
– Até seu marido chegar, ora bolas.
– E se ele não chegar mais? E se você for mesmo o meu marido e nunca mais voltar pra casa?
– Eu? Eu não sei mais o que fazer...
Ficaram calados novamente até que ele começou a tirar a roupa.– O que você tá fazendo? - ela perguntou.
– Estou com sono.
– Sono?
– Tive um dia duro e amanhã vou ter que levantar cedo.
Ele ficou só de cuecas e enfiou-se sob os lençois.
– Tenha uma boa noite - virou-se para o canto.
Ela ficou ainda mais confusa e angustiada. Olhou o relógio sobre a cômoda e viu que já passava da meia noite. Foi até a cozinha, tomou um copo d'água e voltou para o quarto. Notou que havia algo agradavelmente familiar naquele homem que ressonava deitado em seu leito. Fez um novo esforço de memória, mas não conseguiu se lembrar de nada sobre o marido. Seja o que Deus quiser, pensou. Apagou a luz, enfiou-se sob os lençóis e ficou mirando o escuro do quarto.
Walter se moveu e suas pernas a tocaram levemente. Ela pôde sentir os pelos, o calor de suas coxas, a ponta do joelho entre as pernas. Por um momento pensou em resistir, sair correndo ou gritando. Mas sossegou. Roçou a perna nas coxas dele e logo foi correspondida. A mão dele escorregou sob as cobertas e tocou-lhe os seios pontudos. Ela se rendeu calmamente. Ele manobrou a cabeça e lhe deu um beijo na fronte. Aos poucos, foi lhe beijando o rosto. Beijou-lhe a boca demoradamente. Amaram-se sofregamente, e nenhum dos dois se lembrou de ter tido tanto prazer como naquela noite. Dormiram profundamente um sono sem sonhos e amaram-se novamente de madrugada, sempre em silêncio, em diferentes posições.
Quando o dia amanheceu, ela acordou, foi até o banheiro e tomou uma ducha. Depois se deitou novamente e ficou olhando aquele estranho que dormia a seu lado. Às seis e meia, ela o acordou com um beijo.
– Você disse que tinha que sair cedo.
Ele tomou um banho, vestiu a roupa e saiu depressa, sem nem mesmo provar o café que ela coou tentando agradá-lo. Ao chegar no escritório, a primeira coisa que fez foi tirar a aliança da gaveta. Pensou em ler o nome, mas resistiu. Entrou no banheiro, jogou a aliança no vaso e deu descarga.
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