Descia o Sol no horizonte. Pela estrada, coberto de poeira, seguia Frei Bernardo, o rosário a tilintar, a barriga a dar horas.
Longa tinha sido a caminhada, isto para não mencionar a lonjura que ainda tinha de palmilhar até chegar ao mosteiro.
Se era vivo de espírito, não era menos robusto de corpo, o nosso frade. Cem léguas caminharia, tivesse ele a barriga cheia... mas, não se via nem galinha transviada, nem macieira a convidá-lo sem o dono por perto. Nada, coisa alguma que se pudesse comer.
Pouco faltava para ele maldizer a sua vida, quando avistou uma quinta no horizonte: o seu santo protector nunca se esquecia de velar por ele! Sorriu, satisfeito. Afinal, não há mal que sempre dure. Com um pouco de sorte, alguma coisa lhe dariam para comer.
Mas os tempos não iam de feição para se fazer caridade. A vida estava muito difícil, os anos de seca não deixavam os cereais germinar, os legumes definhavam nas hortas, os animais morriam de fome e de sede. Acrescentem-se os impostos que os senhores da terra nunca se esqueciam de mandar cobrar a tempo e horas, os homens que tinham partido para longe, guerrear sabe-se lá que inimigos numa terra distante. O pouco que cada um conseguia extrair da terra ressequida, em sua casa o aferrolhava, que ninguém sabia o que ainda podia estar para vir. Tudo isto o nosso bom frade bem o sabia. Mas não lhe faltava nem bonomia, nem engenho e arte para resolver qualquer problema que lhe surgisse, por mais complicado que ele fosse. Se não se podia ir pela estrada real, dava-se a volta por atalhos, e não era por isso que um homem deixava de chegar ao seu destino.
À medida que encurtava a distância que o separava da casa de paredes de pedra escura da região e telhado de colmo, uma ideia foi ganhando forma na sua mente. Apanhou uma pedra do chão e sorriu. Era uma pedra redondinha. Limpou o pó que a cobria e bateu à porta.
- Quem é? - Gritou uma voz de mulher.
- Deus te salve, boa mulher! Não terás por aí uma panela que me emprestes e um poucochinho de água que me dês? É que aqui mesmo acendo umas brasinhas e faço uma sopa de pedra.
- Essa agora! Não querem lá ver? Havia de ter graça! - exclamou a mulher, rindo, os dedos cruzados sobre o ventre empinado pelo pimpolho que em breve daria à luz. - Sopa de pedra? Nunca de tal coisa ouvi falar!
- Pois olha que é um manjar que se faz muito lá na minha aldeia, e é de muito alimento. Queres ver?
É claro que a curiosidade da mulher era mais do que muita, e ela não a escondia, observando o frade com o mesmo espanto com que olharia para uma galinha com cinco cabeças.
- Sempre estou para ver como é que vossemecê faz esse petisco - disse ela, abanando a cabeça, meio incrédula, meio divertida.
- É simples, já vais ver. Ponho esta pedra dentro da panela com água e deixo ferver - explicou ele, mostrando o seixo reluzente.
A mulher não queria acreditar, mas como a curiosidade era mais forte, lá foi buscar uma panela com água.
Frei Bernardo juntou meia dúzia de cavacas, acendeu um lume bem espevitado, meteu-lhe o tacho em cima com a pedra lá dentro, cruzando em seguida os braços como quem está à espera que qualquer coisa aconteça, e depois sentou-se tranquilamente, desfiando o seu rosário. Passados momentos, já a água fervia... com a pedra lá dentro.
A mulher, sempre desconfiada, não tirava os olhos do frade.
- Sabes que mais - disse ele - vou prová-la. - Hmm... parece que precisa de um bocadinho de sal.
E a mulher foi buscar o sal. Frei Bernardo agradeceu, e voltou às contas do seu rosário.
A mulher, como se nada daquilo lhe dissesse respeito, ia no entanto arranjando afazeres que a obrigassem a rondar por ali. Sempre queria ver. O frade fingia não dar pela presença dela que, a certa altura, não resistiu mais e perguntou:
- Então, e é boa... essa sopa?
- Boa? Fica sabendo que é das coisas mais saborosas que eu já comi. E então se me trouxesses uma batatinha, ou uma folhinha de couve, ainda ficava melhor.
A mulher lá foi à horta e regressou com duas batatas, uma cebola, três folhas de couve. Frei Bernardo não se fez rogado. Uma boa sopa de hortaliças já ele tinha a ferver, diante dele. No entanto, passado algum tempo, virou-se para a mulher e disse:
- Esta sopinha não está nada má, mas se lhe juntasse um dentinho de alho, um fio de azeite, duas rodelas de chouriço... ah! Então até os anjos do Céu seriam capazes de a comer.
A sopa cheirava que era um regalo, disso ninguém poderia duvidar. A mulher entrou em casa e de lá saiu trazendo o que faltava.
- Sabes o que te digo? És uma boa alma. Vai buscar duas gamelas e senta-te aqui comigo, que a sopa chega bem para os dois.
Eis como Frei Bernando se deliciou com uma bela sopa, num local onde, de outro modo, bem sabia que nada lhe teriam dado para comer.
- E a pedra? - perguntou a mulher, quando chegaram ao fundo da panela.
- A pedra? Olha, essa, levo-a comigo, que me há-de servir outras vezes.
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David Martins é autor português.
Longa tinha sido a caminhada, isto para não mencionar a lonjura que ainda tinha de palmilhar até chegar ao mosteiro.
Se era vivo de espírito, não era menos robusto de corpo, o nosso frade. Cem léguas caminharia, tivesse ele a barriga cheia... mas, não se via nem galinha transviada, nem macieira a convidá-lo sem o dono por perto. Nada, coisa alguma que se pudesse comer.
Pouco faltava para ele maldizer a sua vida, quando avistou uma quinta no horizonte: o seu santo protector nunca se esquecia de velar por ele! Sorriu, satisfeito. Afinal, não há mal que sempre dure. Com um pouco de sorte, alguma coisa lhe dariam para comer.
Mas os tempos não iam de feição para se fazer caridade. A vida estava muito difícil, os anos de seca não deixavam os cereais germinar, os legumes definhavam nas hortas, os animais morriam de fome e de sede. Acrescentem-se os impostos que os senhores da terra nunca se esqueciam de mandar cobrar a tempo e horas, os homens que tinham partido para longe, guerrear sabe-se lá que inimigos numa terra distante. O pouco que cada um conseguia extrair da terra ressequida, em sua casa o aferrolhava, que ninguém sabia o que ainda podia estar para vir. Tudo isto o nosso bom frade bem o sabia. Mas não lhe faltava nem bonomia, nem engenho e arte para resolver qualquer problema que lhe surgisse, por mais complicado que ele fosse. Se não se podia ir pela estrada real, dava-se a volta por atalhos, e não era por isso que um homem deixava de chegar ao seu destino.
À medida que encurtava a distância que o separava da casa de paredes de pedra escura da região e telhado de colmo, uma ideia foi ganhando forma na sua mente. Apanhou uma pedra do chão e sorriu. Era uma pedra redondinha. Limpou o pó que a cobria e bateu à porta.
- Quem é? - Gritou uma voz de mulher.
- Deus te salve, boa mulher! Não terás por aí uma panela que me emprestes e um poucochinho de água que me dês? É que aqui mesmo acendo umas brasinhas e faço uma sopa de pedra.
- Essa agora! Não querem lá ver? Havia de ter graça! - exclamou a mulher, rindo, os dedos cruzados sobre o ventre empinado pelo pimpolho que em breve daria à luz. - Sopa de pedra? Nunca de tal coisa ouvi falar!
- Pois olha que é um manjar que se faz muito lá na minha aldeia, e é de muito alimento. Queres ver?
É claro que a curiosidade da mulher era mais do que muita, e ela não a escondia, observando o frade com o mesmo espanto com que olharia para uma galinha com cinco cabeças.
- Sempre estou para ver como é que vossemecê faz esse petisco - disse ela, abanando a cabeça, meio incrédula, meio divertida.
- É simples, já vais ver. Ponho esta pedra dentro da panela com água e deixo ferver - explicou ele, mostrando o seixo reluzente.
A mulher não queria acreditar, mas como a curiosidade era mais forte, lá foi buscar uma panela com água.
Frei Bernardo juntou meia dúzia de cavacas, acendeu um lume bem espevitado, meteu-lhe o tacho em cima com a pedra lá dentro, cruzando em seguida os braços como quem está à espera que qualquer coisa aconteça, e depois sentou-se tranquilamente, desfiando o seu rosário. Passados momentos, já a água fervia... com a pedra lá dentro.
A mulher, sempre desconfiada, não tirava os olhos do frade.
- Sabes que mais - disse ele - vou prová-la. - Hmm... parece que precisa de um bocadinho de sal.
E a mulher foi buscar o sal. Frei Bernardo agradeceu, e voltou às contas do seu rosário.
A mulher, como se nada daquilo lhe dissesse respeito, ia no entanto arranjando afazeres que a obrigassem a rondar por ali. Sempre queria ver. O frade fingia não dar pela presença dela que, a certa altura, não resistiu mais e perguntou:
- Então, e é boa... essa sopa?
- Boa? Fica sabendo que é das coisas mais saborosas que eu já comi. E então se me trouxesses uma batatinha, ou uma folhinha de couve, ainda ficava melhor.
A mulher lá foi à horta e regressou com duas batatas, uma cebola, três folhas de couve. Frei Bernardo não se fez rogado. Uma boa sopa de hortaliças já ele tinha a ferver, diante dele. No entanto, passado algum tempo, virou-se para a mulher e disse:
- Esta sopinha não está nada má, mas se lhe juntasse um dentinho de alho, um fio de azeite, duas rodelas de chouriço... ah! Então até os anjos do Céu seriam capazes de a comer.
A sopa cheirava que era um regalo, disso ninguém poderia duvidar. A mulher entrou em casa e de lá saiu trazendo o que faltava.
- Sabes o que te digo? És uma boa alma. Vai buscar duas gamelas e senta-te aqui comigo, que a sopa chega bem para os dois.
Eis como Frei Bernando se deliciou com uma bela sopa, num local onde, de outro modo, bem sabia que nada lhe teriam dado para comer.
- E a pedra? - perguntou a mulher, quando chegaram ao fundo da panela.
- A pedra? Olha, essa, levo-a comigo, que me há-de servir outras vezes.
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David Martins é autor português.
Um belo conto tipicamente português e fabuloso. De ingenuidade tamanha às alturas da construção literária!
ResponderExcluirUma bela receita você trouxe, Regina.
Abraço.
O Elefante de Costas.
Boa tarde Elefante, seja bem vindo. Agradeço a visita, um abraço.
ResponderExcluirRegina