Capa do livro: Pernoite-Martins Fontes 1989 Ilustração de:Zé Cruz |
Nós éramos mais ou menos duas crianças e devíamos ser muito cretinos. Mas, como não tínhamos nenhuma consciência disso, cada um vivia feliz consigo mesmo. Ela viera passar férias na usina, porque não sei quem dissera, que os médicos tinham dito, que leite cru, de manhãzinha, era bom para a pele. Sua chegada tumultuou um pouco a vida da rapaziada – primos entre si – e, de noite, na “república” onde dormiam os 11 rapazes, cada um alegou que estava com muito sono, ficou assentado que não haveria conversa e, tirando por mim, os 11 ficaram de olho aberto, tramando namoro, a noite inteirinha. No dia seguinte, os 11 avançaram, deram os mais lamentáveis shows de charme e, de saída, ficou outra vez entendido que a moça não tinha vindo para namorar ninguém e sim por causa da pele que, no quinto dia de leite cru, ficaria macia como um cetim de peignoir. Então, aquelas coisas todas das férias foram acontecendo normalmente: banho de rio, pescaria, futebol, passeio a cavalo e cada primo ia dando mais de si, de acordo com sua especialidade. O que fazia sonetos, em vez de um, passou a fazer seis por dia. O que tocava violão, em vez de ficar na primeira e na segunda do tom, saiu para o solo segoviano e ainda batia ritmo na madeira, ao lamentável jeito da senhora Olga Praguer Coelho. O que jogava futebol, deixou de ser “back” e foi para o centro do ataque, onde lhe era possível fazer muitos gols, inclusive alguns de bicicleta. E eu, que não fazia nada, continuei, embora caprichando em fazer nadas melhores, numa surda, porém, intensa homenagem à beleza da moça. Talvez intimidada por tantas demonstrações de especialidades, ela foi, aos poucos, se chegando para mim, que era uma coisa (realmente uma coisa) menos atlética, mais mansa, incapaz de tentar um soneto. Comecei a contar aquelas histórias que eu sabia e, quando não sabia, inventava.
Combinamos, um dia, sair a cavalo, fazer um passeio mais longo e, embora sem outra intenção, que não fosse a de conversar em sossego, saímos os dois, mal o dia clareou. Andamos umas oito léguas, conversamos com homens e mulheres do eito, almoçamos galinha em casa de mandioqueiro, até que sentimos a hora de voltar, quando veio um certo medo do que podiam estar pensando de nós. Resolvemos fazer um caminho novo e mais curto, porém a mata fez traição e perdemos a noção de como sair dela. Indo e vindo, tentando mil saídas – os sagüins, pulando nos galhos davam vaia na gente – chegamos à conclusão de que só Deus nos tiraria dalí. Mal acabamos de rezar, Deus nos colocou numa brecha de mato que, vencidos uns dez minutos de espinhos, nos mostrava outra vez a estrada. Estava querendo anoitecer e, pelos meus cálculos, faltavam umas cinco léguas de passo de cavalo. Os dois animais estavam cansados e, com muita razão, um tanto ou quanto revoltados ante a nossa falta de solidariedade às suas fadigas. Retomamos o caminho e o cavalo dela meteu a mão num buraco, relinchou, dobrou-se e caiu ao comprido. A coitada teve a sorte de escorregar da sela pelo outro lado, assim escapou de se machucar. Tentamos levantar o bicho, mas logo vimos uma horrível fratura exposta na pata dianteira. Houve aquele momento de hesitação, de pânico, vontade de chamar gente, mas em volta não se via ninguém – parecia um domingo. Lembrei-me de que osso de cavalo não encana e tinha que fazer aquilo mesmo: mandei a moça dar as costas e dei um tiro de Smith Wesson na cabeça do zaino Moleque, andador, ¼ de sangue inglês, seis palmos e meio de altura, quatro pés calçados e uma estrela branca na testa. Que a eternidade dos cavalos o tomasse sob suas asas e lhe premiasse a serena existência. Saimos andando, duas gentes e um cavalo, acabrunhadíssimos com a perda do companheiro. Nisso escureceu. Como voltaríamos? Seria fácil, se soubéssemos ao menos onde estávamos. Arranjaríamos outro cavalo. E fomos andando, até que demos com uma velha “casa grande” de um engenho abandonado. Tiramos a sela e os arreios do animal sobrevivente, demos-lhe um crédito de confiança e soltamos na campina. Fomos para o terraço e, nos morcegos, nas casas de cupim e marimbondos, descobrimos todos os malassombrados que existem no mundo. No cimento, estendi o meu capote de vigia – feito de baeta verde – e ofereci à moça.tirei o paletó, fiz uma trouxa e dei-lhe como travesseiro. As muriçocas, pobrezinhas, há tanto tempo desfreqüentadas, revoavam em volta de nossas cabeças, zuniam nos ouvidos e, famintas, caíam na carne de ferrão fincado, até sair sangue. Fumamos e quando sentimos que era lógico dormir, ofereci-me para ir deitar no outro lado da varanda, onde, humildemente, abriria mão de assistir à calma do seu sono, a noite sobre seus olhos fechados. Ela disse que não. Que eu me espichasse ali mesmo. Dormimos tão de repente que nem dissemos boa noite. O tempo perdeu o peso e as dimensões. Acordei com um sol violento, que fritava meus olhos. Não entendia nada, nem a paisagem nem a dor nos rins. Dentro de minha mão havia uma coisa que eu não sabia o que era. Olhei sem tentar adivinhar e era a mão da moça. Ela acordava também e, ao mesmo tempo, saímos do enlace.
Hoje, cismei de pensar: quem foi que pegou a mão primeiro? Foi ela ou fui eu? Vamos morrer sem saber disso, porque nunca mais tocamos no assunto. Bobagem, não?
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