Ao completar 60 viagens da rodovia Presidente Dutra, gostaria de contar as belezas, os perigos e os mistérios dessa estrada comprida. Há quase dois anos, todas as vezes que são Paulo dá saudade e chama, venho fazendo esse caminho e o considero o maior prazer de um viciado em automóvel. Se a estrada ja matou gente, não a evitem por isso. O homem, morredor por excelência, tem morrido, tragicamente, em todos os caminhos do mar,do céu e da terra. É necessário, porém, saber andar naquela pista estreita. Se a reta tem quase cem quilômetros, o pneu pode não ter mais nem um minuto de vida. Se a curva surgiu de repente, vamos desenhá-la a capricho, ocupando menos da metade do asfalto. Se, depois, o terreno é ondulado, na baixa pode haver um buraco ou um carro enguiçado. Tomados esses cuidados, o motorista deve apegar-se a uma ideia - chegar. O tempo normal de uma viagem tranqüila é de seis horas. Mas, a tendência de quem dirige é encurtar esse tempo, depois da terceira ida. Vitor Costa, em automóvel Cadillac, já fez em 4 horas e 15 minutos. Eu mesmo, também em Cadillac, consegui 4 horas e 25. Mas, o senhor Fernando Chateubriand, em Jaguar XK120, quando gasta mais de 3 horas e meia, fica de mau humor o dia inteiro. Nenhum dos leitores deve tentar essas marcas, não só porque estaria viajando perigosamente, como também porque perderia o melhor do passeio: as paradas.
Jaguar XK120 |
Saindo de noite, a primeira parada deve ser o jantar de Resende. Há um restaurante sem nome, à esquerda de quem vai, antes de chegar à zona residencial dos militares. Ali, come-se um bife delicioso, feito na manteiga, com o molho do próprio sangue e servido com ervilhas e arroz. Levados por mim, José Condé, Odorico Tavares, Rubem Braga, Millor Fernandes, Reinaldo Dias Leme e Dorival Caymmi já provaram dessa comida e lamberam os beiços. É prudente, porém, ir à cozinha e conversar com um cidadão meio atarracado, que se chama Oséas. Ele adora ser consultado sobre a qualidade da carne e diz sempre se a alcatra está melhor que o filé.
Depois de Resende é uma reta só, fascinante, instigando o pé contra o acelerador. Passa por Queluz,Cruzeiro, Cachoeira Paulista, Lorena, Guaratinguetá, Aparecida, Pinda e chega a Taubaté, onde é sempre necessário reencher o tanque, ver água, óleo, pneus. No primeiro posto à direita, há um botequim freqüentado por motoristas de caminhões e retirantes nordestinos dos "paus-de-arara". O elemento local ouve conversa e fala com seu "r" oleoso, ótimo para quem tenciona aprender inglês.Comem-se as lingüiças mais gostosas do mundo, fritas na hora, à vista do freguês. O caminho que resta para São Paulo não gasta hora e meia, a não ser que haja inverno e madrugada, quando o nevoeiro raras vezes falha e se cola no pára-choque do automóvel, obrigando todo trânsito a 30 quilômetros de marcha lenta. Em São José dos Campos, num restaurante ao lado do Posta Parente, come-se uma galinha de arroz que nada é diferente das galinhas de sua casa. Logo depois, sente-se passagem para Jacareí, porque mulheres e crianças estão postas à margem da estrada oferecendo os seus famosos biscoitos. Só parei uma vez para essa transação. Depois, passei sem diminuir a marcha e, para não desacreditar de mim, resolvi não acreditar nos biscoitos de Jacaraí. O resto é mais uma reta, até São Paulo, onde, se alguém nos espera, acontece uma porção de coisas boas.
Só deve ir a São Paulo de automóvel quem vai descansar, quem deixou as preocupações em casa e pode merecer a estrada no que ela sabe dar de melhor. Quem vai a negócio, quem leva preocupação ou está sujeito a desencantos ao chegar, deve, de preferência, tomar o trem ou o avião. A estrada é para quem está em estado de graça. A escolha dos companheiros também é muito importante. Todos os preparativos devem ser feitos num máximo de sigilo, para evitar que alguém se ofereça como companhia e pôr-nos à vontade para convocar o que houver de melhor em matéria de apetite, sede e conversa. Devem ser evitados aqueles que cochilam, os que mandam fechar os vidros e os que pedem para diminuir a marcha.
Dizem que é uma maravilha levar namorada recente, mas, para essa graça, embora muitos sejam chamados, poucos são os escolhidos. De um jeito ou de outro, a Rio-São Paulo ainda é uma grande inspiradora. Das suas noites, do que se disse e sentiu em suas idas e vindas, nasceram minhas pobres canções.
Nota:o blog manteve a grafia original
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