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Guia Prático e Sentimental da Rio-São Paulo, Antônio Maria


    Ao completar 60 viagens da rodovia Presidente Dutra, gostaria de contar as belezas, os perigos e os mistérios dessa estrada comprida. Há quase dois anos, todas as vezes que são Paulo dá saudade e chama, venho  fazendo esse caminho e o  considero o maior prazer de um  viciado  em automóvel. Se a estrada ja matou gente, não  a evitem por isso. O homem, morredor por excelência, tem morrido, tragicamente, em  todos os caminhos do mar,do  céu e da terra. É necessário, porém, saber andar naquela pista estreita. Se a reta tem  quase cem  quilômetros, o pneu pode não ter mais nem um minuto  de vida. Se a curva surgiu  de repente, vamos desenhá-la a capricho, ocupando menos da metade do  asfalto. Se, depois, o  terreno é ondulado, na baixa pode haver um  buraco ou um carro enguiçado. Tomados esses cuidados, o motorista deve apegar-se a uma ideia - chegar. O  tempo normal de uma viagem tranqüila é de seis horas. Mas, a tendência de quem  dirige é encurtar esse tempo, depois da terceira ida. Vitor Costa, em  automóvel Cadillac, já fez em  4 horas e 15 minutos. Eu mesmo, também em  Cadillac, consegui 4 horas e 25. Mas, o senhor Fernando Chateubriand, em Jaguar XK120, quando gasta mais de 3 horas e meia, fica de mau humor o dia inteiro. Nenhum dos leitores deve tentar essas marcas, não  só porque estaria viajando perigosamente, como também porque perderia o melhor do passeio: as paradas.

Jaguar XK120
     Saindo de noite, a primeira parada deve ser o jantar de Resende. Há um  restaurante sem nome, à esquerda de quem  vai, antes de chegar à zona residencial dos militares. Ali, come-se um  bife delicioso, feito na manteiga, com o molho do próprio  sangue e servido com  ervilhas e arroz. Levados por mim, José Condé, Odorico Tavares, Rubem Braga, Millor Fernandes, Reinaldo Dias Leme e Dorival Caymmi já provaram dessa comida e lamberam os beiços. É prudente, porém, ir à cozinha e conversar com um cidadão meio  atarracado, que se chama Oséas. Ele adora ser consultado sobre a qualidade da carne e diz sempre se a alcatra está melhor que o  filé.
     Depois de Resende é uma reta só, fascinante, instigando o pé contra o  acelerador. Passa por Queluz,Cruzeiro, Cachoeira Paulista, Lorena, Guaratinguetá, Aparecida, Pinda e chega a Taubaté, onde é sempre necessário reencher o  tanque, ver água, óleo, pneus. No primeiro posto à direita, há um  botequim freqüentado por  motoristas de caminhões e retirantes nordestinos dos "paus-de-arara". O elemento  local ouve conversa e fala com seu "r" oleoso, ótimo para quem  tenciona aprender inglês.Comem-se as lingüiças mais gostosas do mundo, fritas na hora, à vista do freguês. O  caminho que resta para São Paulo não  gasta hora e meia, a não ser que haja inverno e madrugada, quando o nevoeiro raras vezes falha e se cola no  pára-choque  do  automóvel, obrigando todo trânsito a 30 quilômetros de marcha lenta. Em São José dos Campos, num restaurante ao lado do Posta Parente, come-se uma galinha de arroz que nada é diferente das galinhas de sua casa. Logo depois, sente-se passagem para Jacareí, porque mulheres e crianças estão postas à margem da estrada oferecendo os seus famosos biscoitos. Só parei uma vez para essa transação. Depois, passei sem  diminuir a marcha e, para não  desacreditar de mim, resolvi não  acreditar nos biscoitos de Jacaraí. O resto é mais uma reta, até São Paulo, onde, se alguém nos espera, acontece uma porção de coisas boas.
     Só deve ir a São Paulo de automóvel quem  vai descansar, quem deixou as preocupações em  casa e pode merecer a estrada no  que ela sabe dar de melhor. Quem  vai a negócio, quem leva preocupação ou está sujeito a desencantos ao  chegar, deve, de preferência, tomar o trem  ou o avião. A estrada é para quem está em  estado de graça. A escolha dos companheiros também é muito importante. Todos os preparativos devem  ser feitos num máximo de sigilo, para evitar que alguém se ofereça como companhia e pôr-nos à vontade para convocar o que houver de melhor em matéria de apetite, sede e conversa. Devem  ser evitados aqueles que cochilam, os que mandam  fechar os vidros e os que pedem para  diminuir a marcha.
Dizem que é uma maravilha levar namorada recente, mas, para essa graça, embora muitos sejam  chamados, poucos são  os escolhidos. De um  jeito ou de outro, a Rio-São Paulo ainda é uma grande inspiradora. Das suas noites, do que se disse e sentiu em suas idas e vindas, nasceram  minhas pobres canções.

Nota:o blog manteve a grafia original

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