Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia.
Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
Quem a pôs neste socrócio?(1)... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.
Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.
Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.
Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.
Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.
Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.
E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.
Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha
Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.
E nos frades há mangueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.
O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.
A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.
(1) - Socrócio: roubalheira, rapinagem - palavra criada por Gregório de Mattos.
(2) - Relacionado ou composto por sandice; tolo, idiota..
(3) - Antigamente era o oficial de justiça ( que tinha obrigação de prender), gado que vai pastar no verão.
(4) - Corpo dos clérigos ou dos eclesiásticos de uma igreja, de um país.
(5) - Choradeira de criança, fazer um mal e apresentar-se como vitima.
Muito bom! Gosto muito dele. Já fizemos trablho com alunos usando exatamente este poema e os alunos foram muito bem na re-criação. Ele faz pensar !
ResponderExcluirParabéns!
Ví esse poema lá no Museu da Língua Portuguesa, não conhecia Gregório, agora estou lendo. essa ânsia por descobrir é complicada pq existe uma inflação de livros. Nunca vou dar conta ...
ResponderExcluir