MARIA
Gabriela
O alarme do despertador dispara.
6:00h am.
O sol vai se espreguiçando e se levantando devagar lá onde se pode ver. Maria levanta e desliga o despertador. Olha pela janela e se dá conta: mais um dia. Pega a toalha, vai pro banheiro. Escova os dentes, faz careta pro próprio rosto apático no espelho.Sai do banheiro,volta pro quarto enrolada na toalha.
Mais um dia, mais um dia. Nada de novo. Pega qualquer roupa, não faz diferença. Desembaraça os cabelos sem se preocupar em arrumá-los. Não há motivos para estar bonita, não há mesmo ninguém para quem se enfeitar. Termina todo o toalete mecanicamente. Arrasta-se pra cozinha. Liga o rádio. A mesma voz engastada ecoa na cozinha, como todas as manhãs. Prepara uma xícara de café preto, forte e sem açúcar e pega duas bolachas no vidro. Como sempre, demora só o tempo de engolir o desjejum. Desliga o rádio,fecha as janelas. Sai e fecha a porta. Na parada do ônibus, aquela mesma mulher ruiva com aquele perfume enjoado e o velho que lança olhares a todas as mulheres que passam por ali. Como todos os dias.
7:00h am.
Não há nem a chance de se atrasar, o diabo do ônibus chega todo dia no mesmo horário e não demora mais que dez minutos pra chegar ao seu destino. Na hora de sempre ele vira lá na esquina,o 714-Centro. Mesmo motorista, mesmo cobrador. Como todas as manhãs, se espreme no meio daquele mundo de gente no ônibus lotado. Suor, perfume, barulho, conversas, celulares tocando, aquela senhora cantando música de igreja. Ela fecha os olhos,não pensa em nada e espera o ônibus chegar no Centro. Minutos depois desce, para sumir em meio à multidão de pessoas na rua.
7:30h am.
Maria chega num bar meio velho,com o letreiro caído e entra. Passa das mesas e do balcão. Vai prum quartinho lá nos fundos. Põe a bolsa em cima da mesa, amarra um avental amarelo na cintura e uma touca prendendo os cabelos. Cumprimenta duas mulheres na cozinha, pega a vassoura pra varrer por entre as mesas. Pára um segundo e olha o sol pela vidraça, agora alto no céu, espalhando seu vigor pelo telhado do mundo.
17:30h am
Encosta-se no balcão junto das outras duas garçonetes. Exaurida,depois do dia de trabalho. Curioso,mas até o cansaço era o mesmo de todos os dias. Pleno horário de pico, o bar estava tão cheio que até dificultava a passagem por entre as mesas. Sem rédea,seu pensamento escoava livremente. Sentia-se cada vez menos humana. Não possuía vaidade, nem acalentava sonhos e planos. Liberdade e prazer eram palavras sem significado. Há muito não sabia o que era alegria ou satisfação. Os dias eram todos iguais, insípidos, frustrantes. Tudo era rotineiro, repetitivo e sufocante. E assim os dias transformavam-se em meses, os meses em anos e os anos em uma vida anulada. Odiava admitir, mas fora apanhada na armadilha do dia-a-dia,do usual,do hábito. Sentia-se encarcerada, e presa dentro de si mesma. Apesar daqueles olhos caídos no rosto pálido, sabia haver uma outra, apaixonada pela vida e pelas suas imprevisíveis loucuras.Queria quebrar aquela mesmice angustiante, tirar as coisas do lugar, bagunçar o sistema e as regras que lhe atavam as mãos.Queria viver. Não entendia muito bem de onde surgia aquela força repentina, mas naquele momento soube que podia desfazer aquela realidade opaca que a envolvia. A coragem inundou-lhe o espírito e lá foi Maria.
Saiu do balcão e dirigiu-se à única mesa vaga no bar. Apoiando-se nos bancos de plástico, subiu na mesa. Os clientes que apinhavam o bar aos poucos pararam de comer e de conversar, permitindo que um silêncio insuportável ocupasse lugar entre as mesas lotadas.Ninguém entendia o que aquela moça, que parecia lúcida, estava fazendo em cima da mesa do bar lotado. Então, acompanhada por dezenas de olhos desconfiados, ela desfez o nó do avental, jogando-o longe. Em seguida, tirou a touca devagar, soltando os cabelos.Quase pra si mesmo, bem baixinho, começou a cantarolar uma canção, daquelas bem gostosas de ouvir. Abriu os braços e começou a dançar, acompanhando o ritmo da música. Aos poucos aumentou o tom de voz, permitindo a todos ouvirem o tom da melodia. Grande parte do bar, principalmente a ala masculina, começou a aplaudir na batida da canção, simpatizando com aquela moça, que ("como não haviam notado antes?") parecia tão bonita e tão livre. Lá na mesa, Maria estava maravilhosamente feliz. Experimentava aquela deliciosa sensação de sabotar o cotidiano, o lugar-comum, a caretice.Sentiu que podia tocar no céu, se quisesse; já estava nele.Ao redor de si, observava encantada, o amarelado dos dias corroendo-se e descascando para dar lugar a milhões de cores. Em cima da mesa, ao seu lado, a liberdade requebrava os quadris e aplaudia a doce loucura cometida por Maria. A moça rebolou e cantou a plenos pulmões, de olhos fechados, até a música acabar. Curvou-se e agradeceu os aplausos, agora mais efusivos do que nunca. Desceu da mesa ajudada por dois cavalheiros. Estava tão feliz que nem estranhou quando foi chamada até a sala do patrão. Então, foi demitida.
Saiu do bar e sorriu pro sol já recolhendo seus últimos raios e se preparando pra dormir. Para Maria, a vida acabava de começar.
Eu Conto Um Conto - para amadores - da Comunidade Livro Errante; dezembro de 2007
As vezes, o que nos falta, é um pouco da atitude dessa mulher, a Maria.
ResponderExcluirInspirador.
Inspiremo-nos na Maria então.
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