Fome não tinha! O roceiro — que agora chamam de homem do campo — era pobre, muito pobre, mas digno. Digno porque não era aviltado por este tipo de pobreza urbana que conhecemos hoje, nas sórdidas periferias das grandes metrópoles brasileiras. Como dizia a mamãe, “uma pobreza que, pela pobreza, não humilhava”. É verdade que a saúde era pouca:maus dentes (muita rapadura), lombrigas, amarelão, bibiana e outras macacoas. Agora, fome, não tinha
Não tinha porque a terra sendo fértil e o homem tendo a terra, a que vai comer, de comer lhe dá.
Não me lembro — nem pesquisei — o tipo de relação que seo Zé da dona Rita tinha com o provável dono das terras onde eles moravam. Mas, me recordo muito bem que, quando a mamãe ia visitar dona Rita, levando a filharada com ela, levava também, sal e fazenda. Era tudo o que a família de seo Zé precisava: uma saquinha de sal grosso e alguns metros de chita, de petrope, de riscado ou carne-seca. Em troca, a gente almoçava lá e eu nunca vou esquecer os almoços da dona Rita, tudo tirado direto das panelas na trempe do fogão de lenha, servido em pratos esmaltados, numa casa sem mesa, sem cadeiras e sem facas. Só havia uns garfos de estanho e as colheres de pau — que o próprio seo Zeca fazia — pra tirar o arroz da panela de pedra. A grande lembrança fica por conta da buchada, só comida lá, pois o bucho nunca vinha na banda de porco do meu pai. E tinha frango com quiabo e tinha mingau-de-couve (que, apesar do nome, era feito com taioba rasgada) e tinha canjiquinha, agrião, folha de assa-peixe frita, passada no ovo e rolada na farinha, talo de mamão e refogado, ovas de galinha — frutos dourados como o sol, com gosto salgado de coisa proibida —, jiló, bertalha, almeirão, couve picadinha — engraçado: alface e tomate não existia — inhame, cará, batata-doce, chuchu, abóbora-d’água, abóbora-d’anta, abóbora-de-porco, abobrinha, moranga, arroz pilado, torresmo e linguiça, mandioca frita, mandioca cozida, farinha-de-munho, rapadura, inhame com melado, doce de batata-doce ou de tronco de mamão ralado — tronco, mesmo! — laranja, jabuticaba, jambo, fruta-pão, manga, mexerica, gabiroba, carambola e jenipapo — minha boca se enche d’água e meus dentes trincam com esta lembrança — goiaba, goiabada, cuscuz de fubá em panela de barro, biscoito de polvilho, broa, cubu e um bom aluá como refresco. Claro que não era este o menu de um almoço só, mas comi tudo isto lá, nas incontáveis vezes que visitei o pé da serra.
Sapatos, seo Zé não tinha. Nem dona Rita.
Fome, porém, não conheciam.
Estava pensando: e se todos tivessem sua terra pra criar suas galinha e plantar o que seo Zé e dona Rita plantavam em volta de sua casa, estariam por aqui, inchando a cidade grande e morrendo de aviltamento e indignidade?
Originalmente publicado na edição nº 5 de Globo Rural, em fevereiro de 1986.
Fonte: Revista Globo Rural
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