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Mostrando postagens de março, 2024

Historinha de Páscoa, Maria Julieta Drummond de Andrade

 Até hoje Josefina não sabe explicar se foi sonho, fantasia ou realidade. No Domingo de Ramos, depoisde almoçar  bem, com vinho chileno e um licorzinho final, deitou-se na rede da varanda, disposta a abandonar-se ao dia luminoso. A cabeça, os pensamentos iam  e vinham, no mesmo ritmo lento e oscilante da rede; as preocupações foram esmaecendo, à medida que ela se deixava embalar.       Nisso houve um barulhinho que a princípio tentou ignorar, recendo romper a lânguida quietação que a envolvia. Mas o pequeno ruido - áspero, curto, insistente - acabou invadindo-lhe o bem estar. Abriu com relutância o olho preto ( o mais esperto) e logo depois o segundo,já totalmente emersa da modorra: diante dela um coelho malhado a encarava, com a orelha direita para cima e a esquerda encolhida. Seu jeito insolente e meio c6omico não a surpreendeu,pois tudo era possível sob aquela esplêndida luminosidade de abril. O visitante parou de arranhar o mosaico com as unhas, e disse depressa, mexendo os bigodes

Sexta-feira, Fernando Sabino

     Eram onze horas da noite de Sexta-Feira da Paixão e eu caminhava sozinho por uma rua deserta de Ipanema, quando tive a gélida sensação de que alguém me seguia. Voltei-me e não vi ninguém.         Prossegui a caminhada e foi como se a pessoa ou a coisa que me seguia tivesse se detido também, agarrada à minha sombra, e logo se pusesse comigo a caminhar.       Tornei a olhar para trás, e desta vez confirmei o pressentimento que tivera, descobrindo meu silencioso seguidor. Era um cão.       A poucos passos de mim, sentado sobre as patas junto à parede de uma casa, ele esperava que eu prosseguisse no meu caminho, fitando-me com olhos grandes de cão. Não sei há quanto tempo se esgueirava atrás de mim, e nem se trocaria o rumo de meus passos pelos de outro que comigo cruzasse. O certo é que me seguia como a um novo dono e me olhava toda vez que me detinha, como se buscasse no meu olhar assentimento para a sua ousadia de querer-me. No entanto, era um cão.       Associei a tristeza que pe

O Que Estou Lendo? Rosa Montero

      Um livro sobre o luto e suas consequências, que navega com maestria entre a ficção e a memória.      Quando Rosa Montero leu o impressionante diário (incluído como apêndice neste livro) que Marie Curie escreveu após a morte de seu  marido, ela sentiu que a história dessa mulher fascinante guardava uma triste sintonia com a sua própria: Pablo Lizcano, seu companheiro durante 21 anos, morrera havia pouco depois de enfrentar um câncer.      As consequências dessa perda geraram este livro vertiginoso e tocante a respeito da morte, mas sobretudo dos laços que nos unem ao extremo da vida ( Amazon). A Arte de Fingir Dor Como não tive filhos, a coisa mais importante que me aconteceu na vida foram os meus mortos, e com isso me refiro à morte dos meus entes queridos. Talvez você ache isso lúgubre, mórbido. Eu não vejo assim. Muito pelo contrário: para mim é uma coisa tão lógica, tão natural, tão certa. Apenas em nascimentos e mortes é que saímos do tempo. A terra detém sua rotação e as tri

Os amigos, Camilo Castelo Branco

Amigos cento e dez, e talvez mais, Eu já contei. Vaidades que eu sentia! Supus que sobre a terra não havia Mais ditoso mortal entre os mortais. Amigos cento e dez, tão serviçais, Tão zelosos das leis da cortesia, Que eu, já farto de os ver, me escapulia Às suas curvaturas vertebrais. Um dia adoeci profundamente. Ceguei. Dos cento e dez houve um somente Que não desfez os laços quase rotos. – Que vamos nós (diziam) lá fazer? Se ele está cego, não nos pode ver… Que cento e nove impávidos marotos!

O Veredicto, Anna Akhmátova

E a pétrea palavra caiu sobre o meu peito ainda vivo. Pouco importa: estava pronta. Dou um jeito de aguentar. Hoje, tenho muito o que fazer: devo matar a memória até o fim. Minha alma vai ter de virar pedra. Terei de reaprender a viver. Senão… o ardente ruído do verão é como uma festa debaixo da janela. Há muito tempo eu esperava por este dia brilhante, esta casa vazia/ Imagem: retrato de Anna Akhmátova feito por: Nathan Altman em 1941

Há Um Cansaço da Inteligência Abstrata, Bernardo Soares

     Há um cansaço da inteligência abstracta e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo nem inquieta como o cansaço pela emoção. É um peso da consciência o mundo, um não poder respirar com a alma..      Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por detrás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado.      O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos — a da incarnação disforme do Não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos.      Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais

Mais Mulheres Na A.B.L ( veja quais foram e são as mulheres da ABL)

       A antropóloga e  historiadora Lilia Moritz Schwarcz foi eleita , nesta quinta-feira (7), para a cadeira 9 da Academia Brasileira de Letras. Ela sucede o diplomata, poeta e historiador Alberto da Costa e Silva, falecido em novembro do ano passado. A Professora sênior do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e atualmente Visiting Professor em Princeton ( O Globo). Lilian Schwarcz é a autora de As Barbas do Imperador Pedro II, um monarca nos trópicos e Lima Barreto - Triste Visionário. ( O Globo) A  Academia Brasileira de Letras, tem somente 5 mulheres. São elas: Cadeira 1 - Ana Maria Machado  O patrono da cadeira é Adelino Fontoura, quem antecedeu a escritora Ana Maria Machado foi Evandro Lins e Silva. A cadeira número 1 da ABL teve 5 ocupantes, antes  de Ana Maria. Só homens até 2003.   Sugiro: Um Gato no Telhado Menina Bonita de Laço de Fita Quem Sou Eu Cadeira 9 - Lilian Schwarcz (2024)  O patrono da cadeira é Gonçalves de Magalhães, quem antecedeu a escrit

Metonímia, Ou A Vingança do Enganado, Rachel de Queiroz ( Março: mês da mulheres)

 (Drama em três quadros)  Quadro I      Metonímia - a palavra me ficou na memória desde o ano de 1930, quando publiquei o meu livro de estréia, aquele romance chamado O Quinze. Um crítico, examinando a obrinha, censurava-me porque, em certo trecho da história, eu falava que o galã saíra a andar "com o peito entreaberto na blusa". "Que disparate é esse?", indagava o sensato homem. "Deve-se dizer é: blusa entreaberta no peito". Aceitei a correção com humildade e acanhamento, mas aí o meu ilustre professor de latim, Dr. Matos Peixoto, acudiu em meu consolo. Que estava direito como eu escrevera;que na minha frase eu utilizara uma figura retórica, a chamada metonímia - tropo que consiste em trasladar-se a palavra do seu sentido natural da causa pelo efeito, ou do continente para o conteúdo. E citava o exemplo clássico: "taça espumante" continente pelo conteúdo, pois não é a taça que espuma e sim o vinho. Assim sendo, "peito entreaberto"estav

Noites Amadas, Auta de Souza ( março:mês das mulheres)

Ó noites claras de lua cheia! Em vosso seio, noites chorosas, Minh’alma canta como a sereia, Vive cantando n’um mar de rosas; Noites queridas que Deus prateia Com a luz dos sonhos das nebulosas, Ó noites claras de lua cheia, Como eu vos amo, noites formosas! Vós sois um rio de luz sagrada Onde, sonhando, passa embalada Minha Esperança de mágoas nua… Ó noites claras de lua plena Que encheis a terra de paz serena, Como eu vos amo, noites de lua! Agosto de 1898, Macaíba- RN

Ainda Assim Eu Me Levanto, ( Still I Rise)Maya Angelou

Você pode me marcar na história Com suas mentiras amargas e distorcidas Você pode me esmagar na própria terra Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar. . Meu atrevimento te perturba? O que é que te entristece? É que eu ando como se tivesse poços de petróleo Bombeando na minha sala de estar. . Assim como as luas e como os sóis, Com a certeza das marés, Assim como a esperança brotando, Ainda assim, eu vou me levantar. . Você queria me ver destroçada? Com a cabeça curvada e os olhos baixos? Ombros caindo como lágrimas, Enfraquecidos pelos meus gritos de comoção? . Minha altivez te ofende? Não leve tão a sério Só porque rio como se tivesse minas de ouro Cavadas no meu quintal. . Você pode me fuzilar com suas palavras, Você pode me cortar com seus olhos, Você pode me matar com seu ódio, Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar. . Minha sensualidade te perturba? Te surpreende Que eu dance como se tivesse diamantes Entre as minhas coxas? . Saindo das cabanas da vergonha da história

Rio Em Flor de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade

A gente passa, a gente olha, a gente pára e se extasia. Que aconteceu com esta cidade da noite para o dia? O Rio de Janeiro virou flor nas praças, nos jardins dos edifícios, no Parque do Flamengo nem se fala: é flor é flor é flor, uma soberba flor por sobre todas, e a ela rendo meu tributo apaixonado. Pergunto o nome, ninguém sabe. Quem responde é Baby Vignoli, é Léa Távora. (Homem nenhum sabe nomes vegetais, porém mulher se liga à natureza em raízes, semente, fruto e ninho.) Iúca! Iúca, meu amor deste verão que melhor se chamara primavera. Yucca gloriosa, mexicana dádiva aos canteiros cariocas. Em toda parte a vejo. Em Botafogo, Tijuca, Centro, Ipanema, Paquetá, a ostentar panículas de pérola, eretos lampadários, urnas santas, de majestade simples. Tão rainha, deixa-se florir no alto, coroando folhas pontiagudas e pungentes. A gente olha, a gente estaca e logo uma porção de nomes populares brota da ignorância de nós todos. Essa gorda baiana me sorri: ? Círio de Nossa Senhora? (ou de I