Em fevereiro de 1916, o jornalista João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, mais conhecido como João do Rio, assinava através de outro pseudônimo, Joe, na Revista da Semana, uma crônica sobre o carnaval, dialogando com um certo conselheiro, personagem ficcional, sobre as implicações morais da festa.
O Momento do Amor, Joe
O conselheiro é um homem encantador. Baudelaire dizia: “Cá temos um homem que fala do seu coração – deve ser um canalha”. O conselheiro não fala do seu coração, mas é um homem sensível. Com 75 anos, teso, bem vestido, correto, possuidor de doze netos e cinco bisnetos, a sua conversa é sempre cheia de alegria e de mocidade. Outra noite, estávamos no seu salão, e de repente rompeu na rua um “zé-pereira”.
O conselheiro exclamou:
– Eh! Eh! As coisas esquentam!
Como o conselheiro é idoso, pensei vê-lo atacar os costumes e o carnaval. Para gozar da sua simpatia, refleti:
– Temos cada vez mais a dissolução da moral!
– Quem lhe fala nisso? – indagou o conselheiro. Talvez por ter sido sempre um homem moral nunca precisei de descompor os costumes para julgar-me sério. Sabe o que eu sinto quando ouço um “zé-pereira”?
– Francamente, conselheiro…
– Sinto que chega o grande momento do amor no rio…
– De fato, a liberdade dos costumes.
– Heim?
– Sim, os préstitos, as cortesãs, a promiscuidade, as meninas de pijama cantando versos pouco sérios, os lança-perfumes, a bacanal…
– Meu filho, quando se chega a uma certa idade, o resultado é tudo. Se quisermos ver nos três dias de carnaval a folia como depravação, posso garantir que as brincadeiras de antanho com o entrudo, os banhos d’água fria, o porta-voz eram livres como as de hoje com os lança-perfumes, os confetes e as serpentinas. Mas não se trata disso. Trata-se de coisa mais séria. Eu casei aos 18 anos, isto é, há quase 58 anos fiz a loucura de tomar por esposa a minha querida Genoveva. Mas, passado o primeiro ano, essa alucinação causou-me tal pasmo que resolvi estudar-lhe as causas. E descobri.
– Quais foram?
– Uma só: o momento do amor!
– Conselheiro!
– Há uma época no Rio absolutamente amorosa, quer no tempo da monarquia, quer na República. Consultei estatísticas, observei, indaguei, procedi a inquéritos pessoais… Sabe qual é essa época? A do carnaval! Note você como aumentam os casamentos nos meses seguintes ao carnaval. A maioria das inclinações, dos namoros que terminam em casório, começam no carnaval. Três meses depois estava casado. Cinco dos meus filhos namoraram no carnaval. Minha filha Berenice com 30 anos arranjou o marido que lhe faz a vida feliz, no carnaval. Nove dos meus netos seguiram a regra…
– Mas, conselheiro, se é verdade o que V. Exa. diz, era o caso de fazer uns quatro carnavais por ano…
– Não daria resultado, meu amigo. O carnaval é uma embriaguez d´alegria. Quem se embriaga uma vez por ano não está acostumado. Quem se embriaga quatro, raciocina na bebedeira. Veneza acabou pelo abuso da máscara. Nós acabaríamos pelo abuso do “zé-pereira”. Mas uma vez por ano é bem o verão impetuoso do desejo, o momento do amor.
Depois suspirando:
– Aproveite-o você. Eu infelizmente não posso mais. A velhice é como o maître d’hotel da vida. Indica ao cliente o prato ótimo do cardápio e não o come: abre o champanhe e olha apenas a taça. Coma o prato, engula o champanhe. O carnaval chegou!
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