– Deixa que eu carrego – falei na direção de um dos braços a meu alcance. Na qualidade de passageiro sentado, é irresistível minha inclinação para carregar embrulhos alheios. Estou sempre a oferecer préstimos, movido talvez pelo remorso de viajar sentado, e de só ceder lugar a pessoas mais idosas do que eu – pessoas que raramente aparecem no ônibus, de sorte que…
– Eu carrego pra vocês – insisti, executando um movimento complicado, para enxergar os rostos dos garotos. O menor olhou-me com surpresa e hesitação, porém o mais velho estendeu o braço, e o primeiro, depois de uma cotovelada ministrada pelo segundo, imitou-o. Fiquei de posse de duas bojudas pastas escolares, que acomodei da melhor maneira possível sobre os joelhos. Conheço perfeitamente a técnica de carregar embrulhos dos outros. Deve-se colocá-los de tal modo que fiquem seguros sem que seja necessário pôr a mão em cima deles. São coisas sagradas. Não devemos absolutamente lançar-lhes um olhar, mesmo distraído. O perfeito carregador de embrulhos do próximo deve olhar para fora do ônibus, aparentemente observando um eclipse ou uma regata, porém na realidade com o pensamento fixo naquele pacote, ou bolsa, de que é depositário.
Não vá a coisa cair no chão e quebrar. Não vá alguém subtraí-la. Quando até a Santa Casa é assaltada, tudo é possível. Mas que conterá mesmo esse embrulho? Seria feio manifestar curiosidade, e perigoso abrir um volume que não nos pertence. Mas que gostaríamos de saber o que tem lá dentro, isto, humildemente o confesso, em meu nome e no do leitor, é pura, descarnada verdade.
Bom, tratando-se de pastas escolares, não havia segredo a descobrir. A voz da senhora saiu daquele bolo humano:
– Agradece ao moço, Serginho. Agradece, Raul.
Raul (o mais crescido) obedeceu, mas Serginho manteve-se reservado.
Mal se passaram alguns minutos, senti que a pasta de cima escorregava mansamente do meu colo. Muito de leve, a mão esquerda de Serginho, escondida sob um lenço, puxava-a para fora. Compreendi que ele prezava acima de tudo a sua pasta, e deixei que a tirasse. A mãe ralhou:
– Que é isto, Serginho?! Deixe a pasta com o moço.
Serginho duro.
– Serginho, estou lhe dizendo que deixe a pasta com o moço.
Teve de levantar a voz, para torná-la enérgica. Passageiros em redor começaram a sorrir.
Tive de sorrir também.
Muito a contragosto, Serginho voltou a confiar-me sua querida pasta. Um estranho mereceria carregá-la? E se fugisse com ela? Visivelmente, Serginho suspeitava de minha honorabilidade, e os circunstantes se deliciavam com a suspeita.
Mais alguns quarteirões, Serginho repete a manobra. Desta vez é radical. Toma sua pasta e a de Raul. Raul protesta:
– Deixa com ele, seu burro. Não vê que eu não posso segurar nada?
A mãe, em apoio de Raul, exproba o procedimento de Serginho. Este capitula, mas em termos. Só me restitui a pasta do irmão. A sua não correrá o risco. Coloca-a sobre o peito, sob as mãos cruzadas, como levaria o Santo Gral.
– Este menino é impossível. Desculpe, cavalheiro. Não vejo o rosto da senhora, mas sua voz é doce, e compensa-me da desconfiança do Serginho. Sorrio para este, enquanto retribuo: “Oh, minha senhora, por favor. Até que seu filhinho é engraçado.”
Engraçado? Serginho faz-me uma careta e ferra-me um beliscão. A assistência ri. A mãe ferra outro em Serginho, que dispara a chorar. Bonito. É no que dá carregar embrulho dos outros.
Entre as diferentes maneiras de chorar em público, Serginho escolheu a que rende maior dividendo.
Botou a boca no mundo, como se cantasse na Ópera, e, nos intervalos, denunciou-me. Eu é que o tinha beliscado, quando tentara impedir-me de violar a pasta de seu irmão Raul. E mostrava a pasta entreaberta, em desordem. A senhora mudou de fisionomia, censurando-me com voz alterada:
– Francamente, cavalheiro! Nunca pensei que o senhor tivesse tamanha coragem!
– Perdão, minha senhora, eu…
– Perdão coisa nenhuma. É inútil explicar. Meu filho tinha razão de não querer deixar as pastas com o senhor. Vir com partes de gentileza para segurar as pastas das crianças, e depois vasculhar o que tem lá dentro! Um senhor de barbas brancas fazer uma coisa dessas!…
Os passageiros em redor acompanhavam com o máximo interesse o desenvolvimento da cena. No olhar de todos, a maligna curiosidade, o prazer de ver o próximo em situação grotesca acendia um lume especial. Não precisei encará-los para observar a reação. Senti que estavam de olhos acesos, saboreando a desmoralização do senhor respeitável.
– Minha senhora – retruquei -, o seu garoto é um imaginativo, simplesmente.
– Mentiroso? O senhor tem o atrevimento de chamar meu filhinho de mentiroso?!
– Imaginativo, minha senhora. Eu disse i-ma-gi-na-ti-vo.
– É a mesma coisa. Imaginativo é mentiroso com água-de-colônia. Fique sabendo que eu educo meus filhos no jogo da verdade.
– Não duvido. Pergunte ao Raul, que viu tudo. Confio no Raul.
– Que Raul? Que intimidade é essa com meu filho mais velho? Desde quando o senhor está autorizado a tratá-lo de Raul?
– Ouvi a senhora chamá-lo por esse nome.
– Eu posso chamá-lo assim, mas um estranho tem lá esse direito? Raul, meu bem, você viu esse senhor abrir sua pasta e dar um beliscão nó Serginho?
Raul, moita.
– Diz, meu coração, o homem abriu sua pasta, não foi? Depois deu um beliscão no Serginho, não deu?
– Perdão – arrisquei -, a senhora está forçando a resposta de seu filho.
– O filho é meu, não tenho que lhe dar satisfação. O senhor é que está perturbando o interrogatório. Anda, Raul, diz logo o que você viu, menino!
Nada de Raul abrir a boca. Apelei para ele:
– Escute aqui. Você disse a seu irmão que devia deixar a pasta comigo. Depois disso, você viu, você percebeu qualquer gesto de minha parte, tentando abrir a pasta? Não tenha medo de falar.
Raul respondeu, firme:
– Vi, sim senhor. Vi também a hora que o senhor beliscou meu irmão.
– Não é possível!
Raul não disse mais nada. Nem precisava. Eu estava condenado no tribunal das consciências. Envolveu-me a reprovação geral, expressa em murmúrio que soava a meus ouvidos como um brado coletivo: “Crucificai-o!” Todo o ônibus contra mim, como demonstrar minha inocência?
Foi quando apareceu o defensor público. Por mais que se descreia da generosidade das multidões, de dez em dez anos surge um defensor público em socorro dos oprimidos. Era um homem robusto, sangüíneo, de voz forte:
– Calma, senhores e senhoras. Não podemos condenar este passageiro pela simples declaração de duas crianças. Temos de proceder a uma averiguação, temos de ouvir os adultos presentes.
– O senhor também duvida da palavra de meus filhos?! – protestou a mãe ofendida. – Não faltava mais nada. E que é que o senhor tem com isso?
– A senhora tenha a bondade de calar-se, senão vai tudo para o Distrito.
– O senhor é autoridade para nos prender?
– Sou a voz do povo, madame. Não posso ficar calado quando os direitos do cidadão sofrem uma ameaça.
– Comunista é que o senhor é. Subversivo! Motorista, pára esse ônibus que tem um subversivo dentro!
– Pára! – gritaram uns.
– Não pára! – gritaram outros.
– A senhora está muito enganada. Pensa que intimida, me chamando de subversivo? Sou democrata-cristão e estou ao lado da justiça. Senhores e senhoras, alguém viu esse cavalheiro bulir na pasta do garoto e dar o beliscão?
Ninguém respondeu. Todos falavam ao mesmo tempo e o ônibus voava. A senhora explodiu:
– Covardes! Ninguém para defender uma mulher com seus dois filhos inocentes!
Aí, manifestou-se o defensor de mulheres e filhos inocentes, outra raridade cíclica, interpelando o defensor público. Este respondeu à altura. A coisa engrossou. O sinal fechou.
O ônibus estacou. Não sei como, abriu-se a porta dos fundos e, também não sei como, aproveitando a confusão, fugi. Da rua, ainda ouvi a senhora indignada:
– Pega! Pega! Ladrão de pasta!
Carregar embrulho dos outros, eu, hem? Nunca mais.
Fonte: 70 historinhas, C.D.A
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