Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de palmo. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?). Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. Como tu não vi rir ninguém.
Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de sabes onde é o mundo. Chegaste ao fim da vida e o mundo é para ti o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior.
Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas e dezes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “o mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.”
José Saramago, in Deste Mundo e do Outro (1971)
Fonte: A Soma de todos os afetos
Caricatura: Mendes.
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