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O Pecado da Língua Comprida, Regina Ruth Rincon Caires



       A tarde da última sexta-feira do mês era reservada para o benzimento das crianças. 
     Com chuva ou com sol, nesse dia, todos os deveres da manhã eram acelerados, o almoço saía mais cedo, e logo estávamos a caminho. Sempre acompanhadas de três adultos, invariavelmente mulheres, as crianças desmamadas seguiam em fila indiana para o sítio de Dona Genoveva. Os pequenos, que ainda mamavam no peito, não careciam de passar o ramo. Minha mãe e minha avó eram as acompanhantes titulares: a avó já era velha, não mais teria filhos, e eu, com seis anos, era a caçula da minha mãe. As outras tias ainda estavam no período parideiro. E como pariam! A cada ano, a fila indiana ficava maior. 

     A benzedura que Dona Genoveva fazia nas crianças era contra verme, feito lombrigueiro. À frente e fechando a fila, a tia e a mãe, e no meio, a avó. Todas no controle zeloso do bando. Usávamos roupas domingueiras e, nos pés, as inseparáveis alpargatas: azuis para os meninos e vermelhas para as meninas. 

     O percurso era longo. Havia muitas cercas de arame farpado a serem vazadas, e sempre era exigido muito cuidado! Não podia rasgar a roupa! 

     E durante o trajeto era um converseiro danado! A tia falava lá na frente, a avó não escutava direito, as crianças repetiam até que o recado chegava ao fim da fila. E muita coisa era falada. Eu adorava ouvir tudo, prestava uma atenção danada. Quase sempre era conversa de adulto, e as outras crianças se distraíam e nem escutavam direito, mas eu não perdia uma palavra. 

     Naquele dia até que a prosa não estava tão boa... Elas falavam sobre a dose de óleo de rícino que tomaríamos na manhã do sábado. Coisa triste! Existem gostos e cheiros que ficam impregnados na memória de tal maneira que, mesmo que vivêssemos por mais de um século, não arrefeceriam. Entre os maus, estão o gosto do óleo de rícino, e daquele remédio branco, leitoso e grosso, que ficava num vidro marrom com a fotografia do homem com um peixe enorme nas costas. Engolir esses dois remédios era um suplício! E o pior do óleo de rícino era a revolução que provocava na barriga. A gente nem podia andar direito. Tinha de passar o dia inteiro numa distância mínima da privada. Era um corre-corre danado! Um martírio! E não adiantava reclamar, ninguém escapava. 

     Atravessada a última cerca, já no terreiro da casa de Dona Genoveva, era hora de retirar os carrapichos das roupas e das alpargatas. Hora dura! As pontas dos dedos ficavam doídas com tantas espetadas, e as minhas mais ainda. Castigo por roer as unhas! Terminada a cata dos espinhos, ajudávamos a avó. Ela, seguindo as tradições espanholas, usava saias com saiotes rodados e compridos até a altura dos tornozelos. E ainda usava meias! Virava uma maçaroca de panos com espinhos, tudo tão emaranhado que deixava as saias mais curtas e as meias à vista. Nessa hora, eu sempre pensava que uma boa faca ajudaria no serviço, mas nunca disse nada. Retirava, dolorida e pacientemente, os impiedosos carrapichos. 

     Refeitos, entrávamos na casa. Casa escura, de janela minúscula, paredes com reboco desalinhado, precariamente disposto sobre trançados de bambu. Chão de terra batida. Tudo marrom. O chão, a parede, o telhado, tudo era marrom, cor do barro. O pior era o cheiro do cachimbo. Dona Genoveva pitava. Ela toda cheirava a fumo. Na sala, onde fazia o benzimento, havia um banco comprido de madeira, ensebado. De frente, ficava a cadeira onde deveria sentar-se aquele que seria benzido, e ao lado ficava a cadeira de Dona Genoveva. Cadeira rústica de pau, com braços, assento desgastado, feito de trançado de palhas. E na parede, próximo a ela, havia um buraco escavado no reboco, onde ela guardava o cachimbo, o fumo de corda, o canivete e os fósforos. Sempre que ia pegar uma coisa, caía tudo. Uma aflição! 

     Dona Genoveva, com toda a calma do mundo, pegava o fumo, picava e repicava uma porção sobre a mão em concha. Juntava os picados, e, com o dedo, ia compactando tudo no fundo do fornilho. Apertava, apertava, riscava o fósforo e, enquanto pelejava para incendiar o fumo, dava seguidas tragadas e baforadas com a boca murcha, absolutamente carente de dentes. E muitas vezes a saliva escorria e ela a amparava com as costas da mão. Um ritual triste, repetido por inúmeras e inúmeras vezes, sempre assistido pela plateia que diariamente lotava o velho banco de madeira. Dona Genoveva foi a única benzedeira de verme e espinhela caída da região por décadas e décadas. Benzia crianças e adultos. 

     Naquele dia, depois de várias baforadas, quando o ar já estava empesteado de fumaça, Dona Genoveva apagou o fumo do cachimbo com uma cuspida e o recolocou no mocó escancarado do reboco. Passou as mãos para o lado direito da cadeira, pegou o galho de arruda que descansava num caldeirão com água, arrancou um pequeno ramo, e colocou-se de pé para começar a benzedura. A avó sempre era a primeira, e depois seguia a ordem do banco. E o ramo era passado nas costas, no peito, na barriga, nas pernas, na cabeça... A boca de Dona Genoveva não se aquietava. Rezava, rezava, rezava. 

      Na minha vez, era um sofrimento! O cheiro do cachimbo, do fumo, das mãos de Dona Genoveva, e mais o odor da arruda, virava tudo um bodum só. Enjoava. 

      O que mais me impressionava é que, quando o benzimento da família acabava, o ramo de arruda estava completamente murcho, pendido. 

     Nesse dia, a primeira sessão de benzedura de Dona Genoveva de que tenho lembrança, não sei o que houve. Terminado o ritual, todos ainda sentados no banco, a avó colocou-se de pé para a despedida, e eu, intempestivamente, perguntei: 

     - E o café?! 

     Avó, mãe e tia empalideceram. 

     - Que é isso, menina?! – disse a avó. 

     - Não! Nós ainda não tomamos café e, em casa, as visitas só vão embora depois que é servido o café! – respondi. 

     Dona Genoveva também ficou surpresa. Surpresa, não! Ela ficou toda sem jeito, incomodada. Imediatamente, chamou a filha, cochichou alguma coisa no ouvido dela. A rapariga saiu como um corisco pela porta afora. 

     E a benzedeira, toda encabulada, foi até a cozinha, ajeitou a lenha do fogão, colocou mais alguns gravetos, um pouco de palha seca de milho, remexeu as brasas que estavam sob as cinzas, e o fogo ardeu. Destampou a velha chaleira de ferro que estava sobre a chapa com o intuito de se assegurar de que estava cheia de água. 

      De volta à sala, desculpou-se pela demora e disse que o café ficaria pronto em pouco tempo. Era só o tempo que a filha levaria para voltar da casa da vizinha mais próxima, aonde fora buscar café torrado, uma vez que a reserva da casa havia acabado. A programação era torrar café na manhã do sábado. 

     Nem olhei para o lado. Ouvia apenas a respiração ofegante e contida da mãe, perto de mim. Fazia assim quando estava furiosa! Com certeza, os olhos das crianças estavam todos voltados pra mim. Apesar do beliscão doído que recebi do meu irmão, nem pude gemer. Aguentei calada. 

     E o tempo não passava. 

     Finalmente, a filha de Dona Genoveva entrou esbaforida pela porta da sala, passou como um raio por nós e seguiu para a cozinha. Num minuto ouvimos o barulho da rotação do moinho, manivelado pelas mãos da moça. E um cheiro forte de café moído encheu o ambiente. Nem achei gostoso... Sabia o que me aguardava! Não seria nada fácil, e muito menos agradável. 

     Logo o café foi coado e servido. A minha mão tremia quando fui pegar a caneca do café. E demorei a tomar. Não queria que acabasse. A volta pra casa seria medonha, caótica. 

     E foi... 

     Feitas as despedidas, repetidos os agradecimentos, por uns minutos de caminhada, o silêncio imperou. Mas, passada a primeira cerca de arame farpado, o caldo entornou. Se pudesse, eu sairia correndo na frente! Mas não podia. 

     Foram petelecos e palavras da mãe, da tia, da avó. As crianças, silenciosas, só me olhavam com aquele ar de zoeira. Que raiva! Por que não fiquei com a boca fechada?! Meu Deus, o caminho de volta seria comprido... 

     Cheguei em casa com as orelhas em brasa. Estúpida! Por que não segurei a língua?! 

     Os dias correram, e tudo caiu no esquecimento. 

     Até que chegou novamente o dia do benzimento de Dona Genoveva. Tudo igual. A fila indiana, as cercas de arame farpado a serem vazadas, as conversas de gente grande, os carrapichos, o ritual do cachimbo, as benzeduras e a despedida. 

     Nesse momento, eu virei pro meu irmão e disse: 

     - Nada de falar em café! Você sabe o que acontece... 

     Meu irmão chegou a prender a respiração de tanto susto, e Dona Genoveva caiu na risada, dizendo: 

     - Não, menina! Hoje, tem café. 

     A filha rapidamente passou o café e serviu. 

      Nem preciso dizer que na volta tudo aconteceu da mesma maneira. Petelecos pra lá, petelecos pra cá, falação, reprimendas, e as orelhas em brasa. 

       Durante meses, fui impedida de participar dos benzimentos. Ficava com as outras tias e com os pequenos que ainda mamavam, e a mãe dizia que eu só voltaria lá quando a minha língua encurtasse, quando ela coubesse na minha boca. 

      Expectativa frustrada. 

      Nunca encurtou.

 

      

 

                        

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