Pular para o conteúdo principal

Beethoven e o telessexo, Manoel Herzog



         “Sex Call-Center, boa noite, com quem falo?”
          "Ludwig van.” 
⠀    “Boa noite senhor Lúdi, hoje estamos tendo uma noite promocional, estamos disponibilizando: vozes louras, disque 1; índias, disque 2; asiáticas, disque 3; outras etnias disque 4.” 
⠀⠀⠀⠀Desde uma Europa branca, erudita e cansada, desejoso de uma voz negra-blues-singer-gospel, disquei o quatro. 
⠀⠀⠀⠀“Certo, senhor Lúdi, ainda fala comigo. Que tipo de etnia o senhor estaria desejando?” 
⠀⠀⠀⠀“Na verdade uma voz negra, que case bem o ritmo com minha linha melódica. Questão de harmonia.⠀⠀⠀⠀

        “Certo, senhor Lúdi, vamos estar direcionando o senhor para a atendente Sarah. Bom divertimento. O número de seu cartão de crédito, por favor.” 
⠀⠀⠀Durante a operação tive a satisfação egóica de sempre que ligo no telefoda – ouvir uma composição minha. 
⠀⠀⠀“tananã – nanã – nanã – nanã 
⠀⠀⠀tanananã – tanananã…” 
⠀⠀⠀Para melhor compreensão do meu Für Elise aplique à onomatopeia acima a melodia do caminhão de gás.⠀⠀⠀

⠀Superado o entrave burocrático, fui direcionado à voz mais exuberante que já vi. Claro, me venha dizer que não se vê uma voz e eu contesto, a partir da sua linha limitada de raciocínio tampouco se gozaria no sexo só por ouvir, e a gente goza. Nunca tinha visto, visto mesmo, uma voz tão exuberante quanto a de Sarah. 

⠀⠀⠀⠀⠀“Sarah Vaugham, boa noite, com quem estou falando?” 
⠀⠀⠀⠀⠀“Ludwig van.” 
⠀⠀⠀⠀⠀“Ai, que nome lindo, amor. Estou ficando molhadinha só de estar ouvindo a sonoridade.” 
⠀⠀⠀⠀⠀“É, vagabunda? Fala pra mim, você deve ter um bundão gostoso, gostoso pra gente encher a mão.” 
⠀⠀⠀⠀⠀“Claro, amor, estou tendo uma bunda enorme, perfeita, só pra você. Esteja me batendo, me dando tapinha gostoso.” 
⠀⠀⠀⠀⠀Sarah tinha uma voz exibicionista, sabia de seus recursos vocais, arrasava na performance. Me fez esquecer por momentos minha solidão, minha reclusão, meu mundo matemático de música exata, remeteu a uma África ancestral às melodias europeias, ensinou ritmo, batida, axé, remelexo. Fez esquecer o escroto do meu sobrinho funkeiro, que sou obrigado a criar porque o pai morreu de desgosto. Sou pedra dura, comigo ele se fode, vai acabar enlouquecendo, antes ele do que eu, ainda se mata esse puto. Esqueço com Sarah da minha personalidade difícil, minha misantropia, minha reclusão, esse quarto de silêncios.

⠀       “Conta pra mim, neguinha, que que você está fazendo agora.”
⠀⠀⠀  “Estou estando peladinha pra você, amor, estou me tocando gostoso.” 
⠀⠀⠀⠀⠀“Nossa, tô peladão também. Tocando as teclas do meu piano mágico, ebony and ivory living together.” 
⠀⠀⠀⠀“Isso, amor, esteja tocando, esteja tocando gostoso, aaaiiiiii.” 
⠀⠀⠀⠀“Goza, goza, gostosa.” 
⠀⠀⠀⠀“Vou estar gozando, vou estar gozandooooo.” 
⠀⠀⠀⠀“Eu idem. Gozei, tchau.

⠀⠀⠀⠀⠀O preço da ligação é absurdo e, satisfeita a necessidade do instinto, nada justifica postergar os minutos telefônicos pra nada. Não há cigarrinho a dividir no telefone, não há comunhão no pós-venda. ⠀⠀⠀⠀Findo o ato, sempre me vem essa noia. Um arrependimento por viver, um vazio da alma, um vácuo de sons puros, um ruído de engarrafamento a poluir meu silêncio musical. Os gemidos da atendente de telemarketing, lembrados, me faziam engulhar, e vi que a vida, o sexo comercial, a superficialidade das relações humanas submetidas ao mercado, eram tudo uma grande duma merda. Foi a partir daí que comecei a ficar progressivamente surdo. Os psicólogos chamam isso “ouvido seletivo”. 

Texto do livro Ode ao bidê e outros contos.

Manoel Herzog nasceu em Santos, São Paulo, em 1964. Criado em Cubatão, trabalhou na indústria química e se formou em direito. Estreou na literatura em 1987 com os poemas de Brincadeira surrealista. Entre outros livros, é autor dos romances Os bichosCompanhia Brasileira de AlquimiaO evangelista e do livro de poesia A comédia de Alissia Bloom, terceiro lugar no prêmio Jabuti. Pela Alfaguara, publicou os livros A jaca do cemitério é mais doce e Boa noite, Amazona.

Imagem: cartaz/site do festival Beethoven 250 - sem autoria.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.