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O Paciente Improvável, Alonso Alvarez

         Eles não podiam perder tempo. A fila de macas era longa e interminável, dando voltas pelos corredores. Fazia calor. Noite quente de outono.
⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio suava por debaixo da cebola. Cebola, era assim que ele chamava o traje que vestia todos os dias ao entrar no turno. Os colegas zombavam de seu excesso de proteção. Ele não ligava. Tirava dinheiro do próprio bolso para comprar EPIs numa pequena importadora de produtos chineses onde a namorada trabalhava. Vestia três proteções a cada turno.
⠀⠀⠀⠀⠀Já Orlando, colega de enfermaria, vestia o EPI padrão, fornecido pelo hospital, com a logomarca da prefeitura. Nesta noite de quarta-feira, ele estava virado, emendara o seu turno com o anterior, pois fora escalado para substituir Adriana, que havia sido internada com o teste positivo do vírus. Antes de vestir o EPI e iniciar a longa jornada de 24 horas, ele passou na capela do hospital para orar pela amiga.
⠀⠀⠀⠀⠀Estava com muita sede. Fazia horas que não bebia nem comia nada. Nem ia ao banheiro. Era trabalhoso fazer essas coisas vestido de vírus. Era assim que ele se achava usando aquela roupa de astronauta enquanto caminhava pela infindável fila de macas que se estendia a perder de vista pelos corredores e esquinas do 4º andar, reservado para tratar apenas de pacientes infectados com o coronavírus.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando podia avistar as nuvens de gotículas flutuando pelos corredores, se alvoroçando quando passavam macas apressadas, alçando voo como minúsculas mariposas reluzentes atraídas pelas luzes dos lustres. A morte pairava sobre todos naquele andar impiedoso, que até os elevadores temiam e gemiam ao parar.
⠀⠀⠀⠀⠀Ele fazia o sinal da cruz, respirava fundo e fechava os olhos por alguns instantes na esperança de fugir dali, mas as imagens daqueles corredores abarrotados de macas e doentes, de profissionais da saúde, muitos amigos queridos, agora irreconhecíveis em seus trajes de astronauta, aterrorizados ao enfrentar um inimigo tão sorrateiro e implacável, não lhe davam paz nem no escuro dos olhos fechados atrás da viseira e dos óculos de proteção.
⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio seguia com Orlando para atender a próxima maca quando sentiu o celular vibrar dentro do bolso direito da calça jeans sob os EPIs que vestia. O telefone estava inalcançável. Foi quando, sem pensar, olhou para o relógio na parede, que ainda marcava as 21h03 de algum dia quando resolveu parar logo no começo da pandemia.
⠀⠀⠀⠀⠀Novamente acontecera, como todas as noites. Lúcio estava infectado com o incurável TOC de que toda vez que olhava para a hora imóvel no relógio da parede, algum paciente pararia de viver no mesmo instante. Não importava se fossem 19h12 ou 3h38. Não. A hora real não valia. Valia o momento em que ele procurava o relógio na parede, num gesto imprevisto e incontrolável.
⠀⠀⠀⠀⠀Era um TOC sinistro que o revoltava. Ele tentava evitar, mas, num determinado momento do turno, desavisadamente, o seu olhar se desviava do trabalho e alcançava a hora misteriosamente imóvel naquele corredor. E a sentença estava dada, implacável.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando sempre percebia a aflição do colega nesse momento e imediatamente lhe assombrava a certeza inexplicável de que iria acontecer de novo.
⠀⠀⠀⠀⠀Nesta noite de quarta-feira, Lúcio virou-se para o colega de turno e se aproximou do paciente na maca da vez. Ele sabia que a escolha estava feita. Era irrecorrível.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando fez o sinal da cruz. Ajeitou a prancheta de madeira com as fichas de internação. Estava posicionando o prontuário do provável óbito, quando Lúcio recuou um passo ao ver a pessoa da maca. E disse, com a voz abafada pelas máscaras:
⠀⠀⠀⠀⠀– Ele...
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando não entendeu:
⠀⠀⠀⠀⠀– Ele?
⠀⠀⠀⠀⠀Por instante, Lúcio quase se distraiu, quase levantou as viseiras e tirou os óculos ligeiramente embaçados para ver melhor o que estava diante de seus olhos.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando o viu se aproximar do rosto do paciente e o puxou para protegê-lo, pois o procedimento impedia chegar tão perto dos infectados.
⠀⠀⠀⠀⠀Afastou o colega para cobrir a cabeça do paciente, como sempre ocorria em caso de óbito. Mais uma vez a hora imóvel havia sido implacável.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando sempre fazia uma breve e sincera oração para o falecido antes de seguir para a próxima maca. Com maior tristeza e pesar para aqueles que a implacável hora imóvel do relógio ceifava sem piedade. Não queria entender como isso acontecia, nem ninguém no andar sabia que isso acontecia. Só ocorria no turno deles, só com eles. Eram tantas mortes naquela infindável fila, que mais uma, mesmo que por um capricho misterioso e cruel, não faria diferença alguma nos gráficos do governo e nas notícias dos jornais.
⠀⠀⠀⠀⠀Ele despertou da reza com um leve cutucão de Lúcio, que puxara o lençol do rosto do paciente.
⠀⠀⠀⠀⠀Ele se aproximou de Orlando. Como se quisesse contar um segredo ao colega, sussurrou perto do ouvido tapado pela toca de proteção:
⠀⠀⠀⠀⠀– É ele... E ele ainda respira...
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando soltou as mãos, fez o sinal da cruz e fitou o rosto do homem na maca. Por um instante desconfiou que pudesse ser alguém conhecido, mas balançou levemente a cabeça, dando de ombros.
⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio insistiu, apontando:
⠀⠀⠀⠀⠀– É ele, ele... É ele, sim... Só pode ser ele...
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando desdenhou com um sorriso que se desenhou na máscara. Olhou para Lúcio e depois para o homem na maca. Chegou mais perto. Recuou assustado, mas incrédulo:
⠀⠀⠀⠀⠀– Parece...
⠀⠀⠀⠀⠀– É ele. Ele, sim. E está vivo. Com vida.
⠀⠀⠀⠀⠀– Você tá louco!
⠀⠀⠀⠀⠀– Tenho certeza.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando voltou a olhar o rosto do paciente, sem tocá-lo, a uma distância segura. Quis coçar o nariz como sempre faz quando fica intrigado, a viseira não permitiu.
⠀⠀⠀⠀⠀– Não pode ser... Ele, aqui, num hospital público colapsado, nesta fila insana e interminável de pacientes infectados em macas esperando por uma vaga impossível na UTI.
⠀⠀⠀⠀⠀– É ele, sim! – insistiu Lúcio.
⠀⠀⠀⠀⠀– A facada! – quase gritou Orlando, puxando o lençol que cobria a barriga do paciente.
⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio entendeu na hora. Tratou de ajudar o colega. Levantaram a camiseta verde com estampa de um time de futebol. Lá estava ela, a famosa cicatriz no abdômen. Apesar das luvas, Lúcio chegou a sentir as aderências sob o remendo.
⠀⠀⠀⠀⠀Entreolharam-se, perplexos, assustados.
⠀⠀⠀⠀⠀– Quem o trouxe pra cá? Como ele chegou aqui? É uma pegadinha? Só pode ser... – duvidou Orlando, olhando para os lados, para cima, embaixo da maca.
⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio pegou o prontuário pendurado na maca:
⠀⠀⠀⠀⠀– Nome: Não identificado. Documento: Nenhum. Idade: 74 anos (estimada). Endereço: Ignorado. Grupo de risco: Sim. Comorbidades: Nenhuma informação. Procedimentos primários: Passou pela triagem, desacordado. Sintomas: Covid-19 / tosse seca, febre alta e falta de ar. Observações: Provavelmente abandonado na porta do PS ou chegou sozinho e desmaiou na entrada do hospital. Classificação na fila: Pulseira preta, 127.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando puxou o braço esquerdo do paciente para fora e confirmou a cor da pulseira.
⠀⠀⠀⠀⠀– O que vamos fazer? – quis saber Lúcio, olhando para os lados e vendo o hospital mergulhado num atendimento incessante, frenético e estressante. – Veja! Ele é o número 127! Deveriam ter passado na frente!
⠀⠀⠀⠀⠀– Na frente? – estranhou Orlando.
⠀⠀⠀⠀⠀– Claro! Se ele é ele, sim, tem preferência... Vai morrer na fila se não for...
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando interrompeu o amigo:
⠀⠀⠀⠀⠀– Lúcio, aqui, no 4º andar, todos morrem ou vão morrer na fila esperando uma vaga na UTI. Se ele é ele, como veio parar aqui? Ele não sabia o que tá acontecendo nos hospitais públicos? 
⠀⠀⠀⠀⠀– Mas ele recebeu pulseira preta na triagem. Não vai sobreviver – disse Lúcio enquanto olhou com assombro a hora imóvel na parede.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando tratou de descer a camiseta do paciente, tapando a cicatriz e depois o cobrindo com o lençol.
⠀⠀⠀⠀⠀– Temos que fazer alguma coisa – insistiu Lúcio, ameaçando puxar a maca da fila.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando o conteve:
⠀⠀⠀⠀⠀– Não dá pra fazer mais nada. Já vou reservar um lugar para ele no contêiner refrigerado.
⠀⠀⠀⠀⠀– Será enterrado numa cova rasa, como indigente – observou Lúcio, ainda segurando a maca, insistindo para tirá-la da fila.
⠀⠀⠀⠀⠀O colega apontou os corredores:
⠀⠀⠀⠀⠀– Vai furar a fila? Olhe! Não para de chegar macas com infectados graves... Estamos atrasando o nosso trabalho. Quem tem pulseira preta fica onde tá, esperando a vez...
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando repassou cada informação no prontuário do paciente pendurado na maca. Estava inconformado:
⠀⠀⠀⠀⠀– Só pode ser uma pegadinha... Só pode... Ele aqui! Aqui! – seu olhar se perdeu entre os corredores infectados.
⠀⠀⠀⠀⠀Aí pegou a sua prancheta e demonstrou a intenção de seguir para o próximo paciente.
⠀⠀⠀⠀⠀– Vai deixá-lo aí? – quis saber Lúcio, inconformado.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando não respondeu. Avançou para a próxima maca. Viu o número e anotou na folha: 128. Era uma pulseira verde, rara. Ele chegou a sorrir, aliviado.
⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio o puxou. Apontou o paciente:
⠀⠀⠀⠀⠀– Orlando, é ele sim! É ele!
⠀⠀⠀⠀⠀– Não deve ser. É alguém parecido. Temos que continuar. Olha. Já tá começando fila dupla. Hoje é o décimo quarto dia depois daquela manifestação com todos juntos, próximos, sem máscara, berrando, espalhando gotículas... Lembra? Já sabíamos das incontáveis mortes anunciadas.
⠀⠀⠀⠀⠀– Mas ele... Ele não vai sobreviver...
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando encarou o amigo e disse, quase soletrando as palavras:
⠀⠀⠀⠀⠀– Como todos nesta maldita e interminável fila filha da puta!
⠀⠀⠀⠀⠀– Mas é ele. É ele sim...
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando fez um gesto brusco com a mão, tapando parte da viseira de Lúcio:
⠀⠀⠀⠀⠀– Ele não é ele. Vou repetir, Lúcio... Ninguém o deixaria aqui numa fila de macas aguardando vaga na UTI de um hospital público colapsado. Ninguém! Trata-se de alguém parecido com ele. Uma trágica e absurda coincidência.
⠀⠀⠀⠀⠀Algo na TV ligada na primeira esquina do andar chamou a atenção de Lúcio. Caminhou até ela. Puxou o colega. Aumentou o som.
⠀⠀⠀⠀⠀A bordo de um helicóptero, um canal de notícias cobria uma manifestação. A jornalista relatava o que via:
⠀⠀⠀⠀⠀– No meio da pandemia, agravada com uma subida incontrolável e vertiginosa de infectados, internações, filas imensas e intermináveis por uma vaga na UTI ou mesmo por uma cova nos cemitérios, uma multidão se aglomerou na capital exigindo o fim do isolamento social e da quarentena. Já não é mais possível vê-lo entre os manifestantes que ousaram sair de casa nesta quarta-feira. Ele simplesmente desapareceu devorado pela multidão alucinada, entre selfies, abraços, apertos de mãos e bandeiras.
⠀⠀⠀⠀⠀Os dois voltaram correndo para a maca.
⠀⠀⠀⠀⠀Encontraram uma velhinha que sorriu para eles, feliz, como se tivesse despertado de um sonho.
⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio olhou para o relógio. Ele voltara a pulsar. O ponteiro dos segundos se aproximava para completar uma volta.
⠀⠀⠀⠀⠀Orlando despertou do espanto com gritos atropelando-o, pedindo passagem. Eram enfermeiros e enfermeiras eufóricos e barulhentos voltando da UTI, empurrando macas com pacientes curados, sorridentes e felizes.
⠀⠀⠀⠀⠀Pacientes desciam das macas e seguiam sem dor e aliviados para os braços de parentes e amigos que invadiam o andar.
⠀⠀⠀⠀⠀A velhinha da maca 127 se aproximou de Lúcio e o beijou na viseira.



Alonso Alvarez nasceu e mora em São Paulo e é escritor, artista gráfico e editor. No Grupo Companhia das Letras, participou da antologia Haicais tropicais (2018).

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