Como a visita era urgente, nem completei o
horário de almoço. Antes das duas já estava na porta do edifício do Sr.
Oto, um prédio antigo de vinte e poucos andares no começo da rua Tupis. O
tabelião havia me dito com todas as letras que estávamos prestando um
favor, que eu não devia me preocupar com o protocolo. “Esqueça as
testemunhas, Walter, as formalidades. Apenas anote o que ele mandar, e não
pergunte nada.”
⠀⠀⠀⠀⠀ Subi
o velho elevador de portas de madeira e grades de aço pensando na minha
vida de escriturário. Em mais de vinte anos anotando e dando fé, não me
lembrava de nenhum acontecimento significativo, nenhuma surpresa ou
desastre, nenhum episódio que pudesse dividir a minha existência em um
antes e um depois, como ocorria com todas aquelas pessoas que transformavam
a compra de uma casa ou o reconhecimento de um filho em um fato memorável –
que a mim cabia (em nome do tabelião) apenas autenticar. No meu passado eu
não via (e quem vai dizer o contrário?) nada digno de nota. Com a parede do
elevador deslizando na minha frente, todas as tardes do cartório de repente
se condensavam em uma única tarde − até o décimo sétimo andar.
⠀⠀⠀⠀⠀Fui
recebido no apartamento pela secretária.
⠀⠀⠀⠀⠀“Obrigada
por ter vindo”, ela disse. “Fique à vontade, já trago o Sr. Oto.”
⠀⠀⠀⠀⠀O
apartamento era modesto e bem arrumado, atravessado por uma claridade
morna, quase hospitalar. O cheiro de sinteco dava a sensação de imóvel para
alugar. A mobília era mínima, não havia quadro nas paredes. Na única
estante, uma coleção vermelha de clássicos da literatura universal.
⠀⠀⠀⠀⠀O Sr.
Oto apareceu na cadeira de rodas, empurrado pela secretária. Sem
dizer nada, me estendeu a mão trêmula. Apesar da limitação, tinha uma
aparência segura. A pele muito fina e rosada, os cabelos brancos alisados
para trás.
⠀⠀⠀⠀⠀A mulher
estacionou a cadeira, pôs um tamborete do lado. Trouxe um copo com
canudinho e um lenço. Pediu que eu me assentasse na ponta do sofá, rente à
janela. O paredão de prédios do outro lado parecia uma extensão do
apartamento, quase ao alcance dos braços. Ela pediu licença, puxou um
pedaço da cortina. O barulho do centro, bloqueado pelo vidro, produzia uns
baques surdos, descontínuos.
⠀⠀⠀⠀⠀“Vamos
logo com isso, rapaz, antes que eu já não me lembre de mais nada”, ele
disse, assim que ficamos sozinhos, elevando a voz para superar a rouquidão.
⠀⠀⠀⠀⠀Permaneci
uns instantes paralisado, sem saber direito o que fazer. O tabelião não me
passara instrução nenhuma; eu também não tinha perguntado. Abri o velho
livro de notas, fiquei olhando para a cara redonda do Sr. Oto, suas pupilas
azuladas, sem brilho.
⠀⠀⠀⠀⠀Ele deu
um tapa no braço da cadeira, tomou um pouco de água, começou.
⠀⠀⠀⠀⠀“Sem
prolegômenos”, meu caro. “Escreva.”
⠀⠀⠀⠀⠀Número
um.
⠀⠀⠀⠀⠀Uma
escada de prédio vazia, a luz embaçada no quadrado do vitrô.
⠀⠀⠀⠀⠀A tarde
inteira assentado no degrau, esperando a chave.
⠀⠀⠀⠀⠀−
anotei.
⠀⠀⠀⠀⠀Dois.
⠀⠀⠀⠀⠀Um
depósito de água com capacidade para vinte mil litros, na parte de trás do
quintal.
⠀⠀⠀⠀⠀Três.
⠀⠀⠀⠀⠀Uma casa
abandonada na estrada para Curvelo. Um cachorro encostado no muro, olhando
o carro passar. Todas as vezes o mesmo cachorro, que de repente levantava a
pata e urinava.
⠀⠀⠀⠀⠀Quatro.
⠀⠀⠀⠀⠀Entardecer
no pátio de manilhas. Um homem de paletó atravessa o lote com sua pasta,
caminhando entre os tubos.
⠀⠀⠀⠀⠀“Adendo”,
ele disse, levantando o braço.
⠀⠀⠀⠀⠀Este foi
o sonho de uma amiga.
⠀⠀⠀⠀⠀−
registrei.
⠀⠀⠀⠀⠀“Quatro”,
ele continuou.
⠀⠀⠀⠀⠀Cinco,
corrigi.
⠀⠀⠀⠀⠀Entrando
pelo mato, uma clareira à sombra da pedra. O menino abre a sacola para ver
o que tem: pão, ovo cozido, um pedaço de queijo e linguiça.
⠀⠀⠀⠀⠀“Observação”: livro
de aventuras.
⠀⠀⠀⠀⠀(...)
⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀Seis.
⠀⠀⠀⠀⠀Caminhão
de mudanças. Enquanto o motorista discute com o dono da loja, o carregador
cochila no baú, entre o guarda-roupas e o fogão.
⠀⠀⠀⠀⠀Antes de
completar as frases, o Sr. Oto cerrava os olhos, franzia a sobrancelha.
Então abria os olhos, mirando para o alto, como se visse a memória
projetada na parede.
⠀⠀⠀⠀⠀“Adiante,
homem, adiante.”
⠀⠀⠀⠀⠀Sete.
⠀⠀⠀⠀⠀Posto de
gasolina. Um murinho de pedra atrás da carreta, onde certa noite Marília me
esperava com as mãos geladas − sem saber direito o que íamos fazer.
⠀⠀⠀⠀⠀Oito.
⠀⠀⠀⠀⠀Uma
oficina de beira de asfalto, na boca do despenhadeiro. O chão vermelho,
todo rachado, prestes a desmoronar.
⠀⠀⠀⠀⠀Nove.
⠀⠀⠀⠀⠀A sala
de espera do dentista. As letras do nome invertidas no vidro, a portinhola
rangendo.
⠀⠀⠀⠀⠀Dez.
⠀⠀⠀⠀⠀Na
parada do ônibus, uma passagem escura atrás do banheiro. Depois de urinar,
o homem tenta com dificuldade abotoar a calça − um policial saca o revólver
contra ele.
⠀⠀⠀⠀⠀Achei a
lembrança inverossímil, mas registrei sem emendar.
⠀⠀⠀⠀⠀Onze.
⠀⠀⠀⠀⠀No fim
da rua B, uma cerca de arame farpado, fácil de atravessar. Uma canaleta
morro abaixo, até o cimento. Depois de contornar o vestiário, a
piscina. Assim se entrava no clube pelos fundos.
⠀⠀⠀⠀⠀Doze.
⠀⠀⠀⠀⠀Uma
lojinha de roupa íntima, o sol escaldante na calçada. A atendente debruçada
sobre o balcão, esperando.
⠀⠀⠀⠀⠀Treze.
⠀⠀⠀⠀⠀Uma casa
moderna. Fachada clara, ângulos retos. Uma barra diagonal sustentando a
cobertura do alpendre.
⠀⠀⠀⠀⠀[Dois
homens saem da casa arrastando pelo braço um terceiro. Entram no camburão,
o carro arranca, cantando pneu.]
⠀⠀⠀⠀⠀“Um
instante, amigo”, ele me interrompeu. “A última cena não faz parte do
legado.” − mas eu já tinha registrado.
⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀Quatorze.
⠀⠀⠀⠀⠀Garagem
do conjunto BNH. Entra um carro, um dos meninos retém a bola. (...)
⠀⠀⠀⠀⠀O
barulho dos pneus raspando na brita.
⠀⠀⠀⠀⠀Pausa.
⠀⠀⠀⠀⠀Virei o
rosto, lá estava o prédio do outro lado da rua. Um andar de escritórios,
uma sala de aula, uma academia de ginástica. Gente nas janelas com celular,
gente nas janelas fumando. Eu copiava, e achava aquilo agradável, pensando
apenas vagamente no que o Sr. Oto dizia.
⠀⠀⠀⠀⠀Quinze.
⠀⠀⠀⠀⠀Quinze?
⠀⠀⠀⠀⠀Com a
televisão ligada, depois da comida. O sofá de mola arrebentado, agulhas e
panos espalhados, alguma mancha de urina. Ali morava a costureira.
⠀⠀⠀⠀⠀“Mas
essa lembrança não é minha”, balbuciou. “Era da minha mulher” − que
repetiu isso a vida inteira.
⠀⠀⠀⠀⠀−
anotei.
⠀⠀⠀⠀⠀Uma
barraca de laranjas na BR 381. Bandeirinhas coloridas nos bambus,
balançando.
⠀⠀⠀⠀⠀(...)
⠀⠀⠀⠀⠀O galpão
da distribuidora. Penumbra, poeira, talões de nota fiscal. Aquele odor
comercial − de caixas de remédio. Nenhuma rajada de vento.
⠀⠀⠀⠀⠀O Sr.
Oto já tinha parado de numerar os itens, eu também parei de contar. Por um
momento, achei que a lista não teria fim. A voz dele fraquejava. Começou a
ditar palavras soltas, sem nexo. Interrompia uma descrição, vinha com
outra. Eu punha pontinhos e parênteses e passava para a próxima.
⠀⠀⠀⠀⠀“Minha
memória está branqueando”, ele disse.
⠀⠀⠀⠀⠀Depois
de uns minutos, ergueu a cabeça, meio engasgado, tossindo.
⠀⠀⠀⠀⠀Um
barranco erodido na beira da estrada.
⠀⠀⠀⠀⠀Outro
barranco erodido na beira da estrada.
⠀⠀⠀⠀⠀Foi o
último item. Já no instante seguinte, ele mastigava os dentes sem nada.
Procurei um vulto na copa, não enxerguei a ajudante. O barulho do rush
subia à janela, o apartamento começava a ficar escuro. No prédio da frente,
a sala de aula já estava iluminada. Durante algum tempo ficamos mudos, o
Sr. Oto olhando para a parede, eu olhando para os vinte volumes de capa
dura dos grandes romances universais. Identifiquei um de Dickens, outro de
Flaubert.
⠀⠀⠀⠀⠀A moça
apareceu. Fechei o livro de notas. Ela alisou o cabelo ralo do patrão.
⠀⠀⠀⠀⠀“Sr.
Oto”, ela sacudiu-lhe os ombros.
Com a
cabeça, ele fez que sim.
⠀⠀⠀⠀⠀Ela virou-se
na minha direção.
⠀⠀⠀⠀⠀“Creio
que o senhor pode ir embora, Sr. Walter”, disse enfim.
⠀⠀⠀⠀⠀Tive
vontade de ficar mais um pouco, reler a lista em voz alta. Sentia ali um
bem-estar físico − um estranho relaxamento.
⠀⠀⠀⠀⠀A
ajudante me pediu que saísse e puxasse a porta. “E, por favor”, emendou,
“entregue o testamento ao tabelião”.
⠀⠀⠀⠀⠀Nada
mais foi explicado, eu também não perguntei.
⠀⠀⠀⠀⠀Ela
girou a cadeira, e as rodas deslizaram pelo corredor.
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No dia seguinte, cheguei cedo ao cartório. Transcrevi a lista do livro para o computador, imprimi uma cópia, me deu vontade de autenticar. Colei o selo, bati o carimbo, datei, rubriquei. Seja lá como for, precisava fazer o serviço completo. O tabelião assinou, sem saber do que se tratava. Ele nem tinha me perguntado o que se passara na casa do Sr. Oto. Apenas agradeceu a minha discrição e boa vontade, disse que o Oto era um grande amigo, que fora um homem genial. Agora, coitado, enfrentava a esclerose. Não podia deixar de satisfazer aquele seu pequeno delírio. “A vida é assim, meu caro Walter”, disse o tabelião, com sua cara de despacho. “Um dia é ele, mas amanhã, quem vai saber?”. Algumas semanas depois, me deu a notícia de que o Sr. Oto havia falecido.
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⠀⠀⠀⠀⠀ Isso aconteceu em outubro. Daí para diante, o trabalho no cartório, como de hábito, só foi aumentando. Largava o serviço por volta das seis. Punha escrituras em dia, deixava prontos os atestados, separava documentos para escanear (o cartório estava entrando na era digital). Chegava extenuado em casa. Para espairecer, antes de encarar o metrô, andava até a praça da estação, parava na lanchonete da esquina. Ainda pegava um resto de sol. Pedia uma cerveja e um pastel, ficava olhando o comércio, o movimento da calçada. Para ampliar a praça, a prefeitura tinha feito uma desocupação, e um imenso terreno, antes tomado de casebres de pau e lona, estava agora vazio, cercado por uma tela de proteção. Na frente da lanchonete, o trânsito corria devagar. Eu enchia o copo, os carros avançavam um pouco, um cachorro surgia do lado de lá da rua. O cachorro ia e vinha, rondando pedestres, cheirando a obra. Passava um ônibus, ele levantava a pata, urinava no torrão de brita. Na tarde seguinte, a cena se repetia. O mesmo cachorro, urinando no torrão de brita.
⠀⠀⠀⠀⠀ Comecei a prestar atenção nesses acontecimentos. Uma vez, descendo a avenida Amazonas, topei com um caminhão de mudanças atravessado na calçada (o porteiro do prédio discutia com o motorista). De relance, vi um homem deitado no bagageiro, ao lado do fogão. Outro dia, contornando a praça em obras, enxerguei alguém dentro do terreno interditado. Um sujeito de terno, com a pasta na mão, buscava um atalho entre as manilhas. Aqui e ali, observando a cidade, tenho descoberto escadas, barrancos, garagens, becos e postos de gasolina. Nada é muito exato, não tenho nenhuma garantia. Entretanto, discretamente e sem testemunhas, vou me tornando aos poucos o herdeiro daquele testamento.
Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em teoria literária pela UFMG, publicou A casa dos outros e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário Biblioteca Nacional. |
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