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A Morte Na Sala de Aula, Walt Whitman



Tlim‑tlim‑tlim! O pequeno sino tocou sobre a mesa do professor numa escola de vilarejo; era de manhã, e as tarefas da primeira parte do dia estavam quase cumpridas. Todos sabiam muito bem que aquilo era uma ordem de silêncio e atenção; quando a ordem foi atendida, o professor começou a falar. Era um homenzinho atarracado, e se chamava Lugare.
⠀⠀⠀⠀⠀“Rapazes”, falou, “chegou uma reclamação de que ontem à noite um de vocês roubou frutas do quintal do sr. Nichols. Acho que até sei quem é o ladrão. Seu Tim Barker, venha cá.”
⠀⠀⠀⠀⠀O menino aproximou‑se. Era um garoto de boa aparência e franzino, dos seus treze anos; o rosto tinha uma expressão sorridente e bem‑humorada, que nem mesmo a acusação que lhe faziam nem o tom duro e o olhar ameaçador do mestre conseguiram dissipar por completo. A fisionomia do garoto, no entanto, era de uma brancura fantasmagórica demais para ser saudável; apesar da aparência carnuda e satisfeita, tinha uma expressão singular, como se alguma doença profunda, daquelas terríveis, estivesse instalada lá dentro. Quando o rapazinho se postou diante do altar de sacrifícios – um lugar frequentemente transformado em cenário de brutalidades cruéis, de desbaratamento da inocência, de abuso da infância indefesa, de opressão dos sentimentos mais delicados –, Lugare lançou‑lhe um olhar carrancudo, deixando claro que seu humor não era dos mais agradáveis. (Felizmente, um sistema mais digno e filosófico está provando aos homens que as escolas podem ser administradas sem açoites, lágrimas e suspiros. Estamos caminhando para aquele ponto em que os antigos mestres‑escolas, com seus chicotes de couro, suas pesadas varas e seus engenhosos métodos de torturar crianças, serão apenas a lembrança odiosa de uma doutrina ignorante, cruel e desmoralizada. Que ventos propícios acelerem a chegada desse dia!)
⠀⠀⠀⠀⠀“Ontem à noite você esteve perto do quintal do sr. Nichols?”, perguntou Lugare.
⠀⠀⠀⠀⠀“Sim, senhor”, respondeu o garoto. “Estive.”
⠀⠀⠀⠀⠀“Muito bem, senhor. Fico contente que tenha confessado assim tão rápido. Então achou que podia fazer um pequeno furto, divertir‑se com algo do qual devia se envergonhar, e que não seria punido por isso, não é?”
⠀⠀⠀⠀⠀“Eu não roubei nada”, respondeu o garoto rapidamente. O rubor inundou‑lhe o rosto, difícil saber se por medo ou por indignação. “Ontem à noite não fiz nada de que me envergonhasse.”
⠀⠀⠀⠀⠀“Que descaramento!”, gritou o professor, colérico, segurando uma longa e pesada vara: “Não me venha com essa conversinha manhosa, senão vou espancá‑lo até implorar como um cão”.
⠀⠀⠀⠀⠀O rosto do jovem empalideceu um pouco; o lábio tremeu, mas ele não falou nada.
⠀⠀⠀⠀⠀“Diga‑me, senhor”, prosseguiu Lugare, enquanto os sinais exteriores da fúria desapareciam de suas feições, “o que fazia nas proximidades do quintal? Talvez estivesse só receptando o fruto do roubo e tivesse um cúmplice para executar a parte mais perigosa do trabalho?”
⠀⠀⠀⠀⠀“Passei lá porque fica no caminho de casa. Voltei mais tarde para encontrar um conhecido; e... e... Mas não entrei no quintal nem tirei nada. Nunca roubaria... nem mesmo se estivesse morrendo de fome.”
⠀⠀⠀⠀⠀“Devia ter se aferrado a esse princípio ontem à noite. O senhor foi visto, Tim Barker, passando por baixo da cerca do quintal do sr. Nichols, pouco depois das nove da noite, com um saco nos ombros. O saco aparentemente estava repleto de frutas, e hoje os canteiros de melão amanheceram totalmente vazios. Então, senhor, o que havia dentro daquele saco?”
⠀⠀⠀⠀⠀Era como se o fogo incendiasse o rosto do acusado. Ele não disse uma palavra. A escola inteira tinha os olhos cravados nele. O suor escorria como gotas de chuva pela testa branca.
⠀⠀⠀⠀⠀“Fale, rapaz!”, gritou Lugare, brandindo a vara ruidosamente na mesa.
⠀⠀⠀⠀⠀O garoto olhou como se fosse desmaiar. Mas o professor impiedoso, certo de ter revelado um criminoso e exultante com o castigo severo que agora teria justificativa para infligir, continuou a escalar níveis cada vez mais elevados de fúria. Enquanto isso, a criança mal sabia onde se enfiar. A língua grudava no céu da boca. Ou estava muito assustado ou realmente não estava se sentindo bem.
⠀⠀⠀⠀⠀“Estou mandando que fale!”, Lugare bradou novamente, com voz de trovão; a mão, empunhando a vara, elevava‑se acima da cabeça num gesto muito significativo.
⠀⠀⠀⠀⠀“Não consigo, senhor”, disse o pobre camarada, debilmente, com a voz rouca e gutural . “Falo numa outra... numa outra hora. Por favor, deixe‑me voltar para o meu lugar... eu não estou bem.”
⠀⠀⠀⠀⠀“Claro, muito plausível.” O sr. Lugare inflou o nariz e as bochechas com satisfação. “Acha que vai me fazer acreditar nas suas mentiras? Desmascarei o senhor, muito claramente; e fico satisfeito de saber que o senhor é um bandidinho tão rematado quanto tantos outros por aí. Adiarei por uma hora a solução deste caso com o senhor. Então vou chamá‑lo de novo. Se não contar a verdade inteira, vou fazê‑lo se lembrar dos melões do sr. Nichols pelo próximo mês. Pode sentar‑se.”
⠀⠀⠀⠀⠀Feliz com a indelicada permissão, e sem emitir nenhum som, a criança arrastou‑se trêmula até o seu lugar. Sentia‑se esquisito, atordoado – mais como se estivesse num sonho do que na realidade; colocou os braços sobre a carteira e debruçou o rosto entre eles. Os alunos voltaram aos estudos, já que durante o reinado de Lugare na escola tinham se acostumado tanto às cenas de violência e aos castigos cruéis que tais coisas não eram mais do que uma pequena interrupção no curso do dia.
⠀⠀⠀⠀⠀Enquanto corre o período de uma hora, vamos esclarecer o mistério do saco e da aproximação de Barker do quintal, na noite anterior. A mãe do garoto era viúva, e os dois viviam com os recursos mais escassos. O pai morrera quando ele tinha seis anos, e o pequeno Tim era uma criança macilenta e mofina, que ninguém acreditava que viveria muitos meses. Para surpresa geral, a pobre criança sobreviveu, e parecia recobrar a saúde, assim como crescia e ganhava boas cores. Isso devia‑se aos préstimos gentis de um médico eminente que tinha uma propriedade nas redondezas e se interessara pela família da viúva. O médico disse que Tim talvez superasse a doença; mas tudo era incerto. Tratava‑se de enfermidade misteriosa e imprevisível; e não seria de admirar se num momento de aparente saúde o menino fosse repentinamente levado. No início a pobre viúva viveu em constante preocupação; mas passaram‑se muitos anos, e nenhum dos males iminentes caíra sobre a cabeça do garoto. A mãe parecia confiante de que ele viveria, para ser o apoio e o orgulho da sua velhice. Os dois lutavam juntos, felizes, resistindo à pobreza e ao desconforto, sem ficarem se lamentando, poupando um ao outro.
⠀⠀⠀⠀⠀Com seu temperamento agradável, Tim conquistara muitos amigos no vilarejo, entre eles um jovem fazendeiro de nome Jones, que junto com o irmão mais velho trabalhava em regime de parceria numa fazenda da região. Frequentemente Jones presenteava Tim com um saco de milho ou batata, ou então com algum legume que separava do seu quinhão no negócio; mas como o sócio era um homem avarento e temperamental, que considerava Tim um rapaz perigoso, indigno de ajuda por não trabalhar, Jones geralmente dava os presentes de maneira que ninguém soubesse, a não ser ele mesmo e os gratos beneficiários de sua bondade. A viúva também não queria que os vizinhos soubessem que alguém lhes dava comida; em pessoas da sua condição, há sempre o orgulho compreensível de não quererem ser vistas como objetos de “caridade”. Na noite em questão, disseram a Tim que Jones mandaria um saco de batatas, e que o esperariam no portão do sr. Nichols. Foi esse o saco sob o qual viram Tim cambalear, e que fez com que o infeliz fosse acusado de ladrão e condenado pelo professor, pessoa pouco adequada para um posto tão importante e de tanta responsabilidade. Afoito nas decisões e de uma severidade inflexível, ele era o terror daquele pequeno mundo, que governava como um déspota. Parecia comprazer‑se com a punição. Pouco sabia sobre as doces fontes que rapidamente jorram do peito das crianças diante de gentilezas e palavras amáveis. Todos o temiam pela severidade, e ninguém o amava. Eu diria que era um caso isolado em sua profissão.
⠀⠀⠀⠀⠀O prazo de uma hora chegava ao final, e aproximava‑se o momento em que Lugare dispensava a escola, fato recebido com muita alegria. Vez por outra um dos escolares lançava um olhar furtivo para Tim, às vezes com pena, às vezes com indiferença ou curiosidade. Sabiam que ninguém se apiedaria, e embora a maioria gostasse dele, as surras ali eram comuns demais para despertar simpatia. Os olhares inquiridores, no entanto, ficaram sem resposta, já que ao final de uma hora Tim continuava com o rosto todo escondido, a cabeça debruçada entre os braços, exatamente como ficara ao voltar para a carteira. De vez em quando Lugare lançava na direção do garoto um olhar zangado, parecendo prometer vingança pela teimosia do menino. O último aluno fora por fim ouvido, a última lição tinha sido repetida, e Lugare sentou‑se à mesa, sobre o tablado, com uma vara longa e forte à sua frente.
⠀⠀⠀⠀⠀“Agora, sr. Barker”, falou, “vamos resolver nosso caso. Venha cá.”
⠀⠀⠀⠀⠀Tim não se moveu. A sala de aula estava num silêncio sepulcral. Não se ouvia um som, a não ser, de quando em quando, uma respiração mais funda.
⠀⠀⠀⠀⠀“Senhor, preste atenção, ou será pior para você. Venha cá e tire a jaqueta!”
⠀⠀⠀⠀⠀O garoto não se mexia, como se fosse um pedaço de madeira. Lugare estremeceu de raiva. Ficou sentado um minuto, como se pensasse na melhor maneira de descarregar a vingança. Aquele minuto, transcorrido num silêncio de morte, foi medonho para algumas crianças, cujos rostos empalideceram de pavor. O tempo gotejava lentamente, era como o minuto que antecede o clímax de uma tragédia encenada com requinte, em que um grande mestre da arte teatral pisa no palco e você e toda a multidão em volta esperam, com os nervos estirados e a respiração suspensa, a terrível catástrofe.
⠀⠀⠀⠀⠀“O Tim está dormindo, senhor”, disse finalmente um garoto sentado perto dele.
⠀⠀⠀⠀⠀Ao saber disso, as feições de Lugare relaxaram da cólera feroz para o sorriso; mas era um sorriso mais maligno, se isso é possível, que a velha carranca. Talvez se divertisse com o terror estampado nos rostos ou exultasse pensando com maldade numa maneira de acordar o menino adormecido.
⠀⠀⠀⠀⠀“Então o jovem cavalheiro dormiu!”, disse. “Vamos ver se achamos alguma coisa para fazer cócegas nos seus olhos. Não há nada como extrair o melhor de uma história ruim, meninos. O maroto parece não se preocupar com uma surrinha de nada, já que nem isso é capaz de mantê‑lo acordado.”
⠀⠀⠀⠀⠀Lugare sorriu de novo ao fazer essa observação. Pegou a vara firmemente e deixou o seu lugar. Com passos mansos e furtivos, atravessou a sala e postou‑se ao lado do infeliz. O garoto continuava incônscio da punição iminente. Talvez estivesse em sonhos dourados de juventude e prazer; ou num lugar distante, no mundo da fantasia, sentindo prazeres que a fria realidade não pode oferecer. Lugare ergueu a vara bem acima da altura da cabeça, e, com a mira exata e a experiência adquirida em longa prática, desceu‑a sobre as costas de Tim numa pancada forte, que parecia suficiente para acordar um homem congelado da letargia mais profunda. Rápidas, as pancadas se sucederam. Sem esperar o efeito da primeira ferida, o desgraçado usou seu instrumento de tortura primeiro num lado das costas do garoto, depois no outro, e só parou ao final de dois ou três minutos, por pura exaustão. Mas Tim continuava imóvel. Sentindo‑se afrontado pela inércia do menino, Lugare empurrou um dos braços, sobre o qual o garoto se apoiava na carteira. A cabeça caiu no assoalho, com um baque surdo; o rosto virou‑se para cima e ficou exposto à visão geral. Quando Lugare viu aquilo, ficou imóvel, como se petrificado diante da visão de um basilisco. O semblante cobriu‑se de uma brancura plúmbea; a vara caiu‑lhe das mãos; e seus olhos, arregalados, olhavam com ferocidade para um monstruoso espetáculo de horror e morte. O suor parecia brotar em glóbulos de todos os poros do rosto; os lábios macilentos contraíram‑se, deixando à mostra os dentes; e quando afinal estendeu os braços, e com a extremidade de um dos dedos tocou o rosto da criança, seus membros tremiam como a língua de uma cobra, e a força parecia querer abandoná‑lo por um momento. O menino estava morto. Provavelmente havia algum tempo, pois os olhos estavam virados para cima, e o corpo, completamente gelado. A morte estava na sala de aula, e Lugare açoitara um cadáver.
 
Tradução de Hélio Guimarães

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