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Nascido em 12 de outubro: Fernando Sabino


           
      Marcar um encontro com Fernando Sabino não era tarefa fácil — ainda mais se fosse um pedido de entrevista. Ele se desculpava gentilmente: "Ah, escreve você, coloca umas palavras bonitas na minha boca...".
O autor de "O encontro marcado" explicava que tudo que tinha a dizer estava em sua volumosa obra, que começou a ser construída aos 13 anos, quando escreveu um conto policial para uma revista da PM.
À época, ainda assinava Fernando Tavares Sabino. Aos 18 anos, ouviu de Mário de Andrade, com quem se correspondeu por muitos anos, o conselho: "Se você quiser continuar sendo escritor, tem que encurtar o nome." Ele acatou a opinião do amigo, encolheu a assinatura e esticou a carreira literária ao longo de mais de seis décadas, seja como autor de romances como "O grande mentecapto", seja como escritor de crônicas que narram com humor e lirismo os desacertos e os absurdos da vida cotidiana. Era um "Kafka de eletricidade positiva", nas palavras do poeta Paulo Mendes Campos.
Último dos "quatro mineiros do apocalipse" — os outros eram Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Mendes Campos — Sabino nasceu em 12 de outubro de 1923, em Belo Horizonte. "Dia da Criança que eu sou até hoje", apressava-se em completar. Desde cedo pedira que em seu epitáfio constasse a inscrição: "Aqui jaz Fernando Sabino, nasceu homem, morreu menino." Para ele, o ser humano tinha como tarefa "recuperar a inocência perdida e tornar a olhar o mundo com os olhos lavados de pureza, de quem vê a vida pela primeira vez".
O jeito moleque e o espírito brincalhão acompanhavam-no por toda a parte. Suas raras incursões à vida noturna nos últimos anos eram assim justificadas: "Meus amigos estão no São João Batista, que fecha às 18h", gracejava, numa referência ao cemitério de Botafogo.
O escritor não gostava de atender o telefone. Três secretárias — duas eletrônicas, além de Fabiana — encarregavam-se de filtrar os interlocutores indesejados. Depois das críticas que recebeu pelo livro "Zélia, uma paixão", Sabino restringiu sua vida social. Mas bronqueava quando o chamavam de recluso. Se é certo que era avesso a comemorações, que vivia afastado dos holofotes e que se mantinha arredio às homenagens, ele podia ser encontrado diariamente em caminhadas pelo calçadão de Copacabana ou batendo perna por Ipanema.
A verdade é que Sabino preferia o contato com porteiros, garçons, manobristas, moradores de rua — gente comum, tantas vezes transformada em crônica. Costumava mobilizar os amigos para ajudar figuras como Barbudo e Rubem, dois vendedores de livros das ruas de Ipanema. "Eles não são mendigos, mas o rapa vem e recolhe tudo. São discretos, não atrapalham, será que não tem como conseguirmos uma licença para eles?", perguntava, pedindo que o gesto não fosse tornado público.
Certa vez, junto com Otto, foi até a Barra da Tijuca soltar Barbudo, que tinha sido detido. Sabino tinha uma frase que ajudava a entender sua atitude: "Quando você tem um problema muito difícil de resolver, comece por resolver o problema dos outros."
Com Otto, Hélio e Paulo, Sabino formou a mais produtiva e intensa amizade da literatura brasileira. As cartas que escreveu aos três amigos foram tornadas públicas em 2002. Em "Cartas na mesa", ele dá mostras de uma voracidade epistolar que já tinha sido revelada antes no livro "Cartas perto do coração", reunindo a correspondência do escritor com Clarice Lispector.
Em 2004, Sabino publicou seu último livro, "Movimentos simulados", na verdade escrito aos 23 anos e só agora tornado público.
Sabino mudou-se de Belo Horizonte para o Rio aos 21 anos, já casado com Helena, filha do ex-governador mineiro Benedito Valadares, de quem o escritor ganhou um cartório. Ainda adolescente, publicou seu primeiro livro, "Os grilos não cantam mais". Em julho de 1999, recebeu da Academia Brasileira de Letras (ABL) o maior prêmio literário do país, o Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. Apesar dos convites, nunca quis se candidatar à ABL. Justificava: "Nada contra a academia, mas não tenho vocação para atividades de caráter social, como associações de classe, sindicatos e agremiações."
A bateria e o jazz estavam entre suas maiores paixões. Gostava de dizer que só tocava depois da terceira dose de uísque. A última apresentação de sua banda foi em fevereiro de 2004, no Shopping Cassino Atlântico, em Copacabana, quando foi ovacionado pelo público. Uma vez, encontrou-se com um amigo, que reclamou: "Tem um cara no meu prédio que toca bateria!". Era o próprio Sabino, que depois da queixa resolveu doar o instrumento para dom Hélder Câmara leiloar em benefício da Feira da Providência. Mais tarde, comprou uma nova bateria, que ficava armada em sua casa.
Nos últimos tempos, Sabino dedicava-se a revisar sua obra publicada pela editora Record e a revirar seu baú literário. Não queria deixar nada inédito para ser lançado após sua morte. A razão? "O que não foi publicado é porque não presta."
Há dois anos, Sabino descobriu que estava com câncer no esôfago. O tratamento parecia ter dado certo, mas, há quatro meses, um tumor no fígado o levou a fazer quimioterapia. No começo de setembro, disse a uma amiga que estava tendo uma visão e que iria embora brevemente. Por volta do meio-dia de 11 de outubro de 2004, , na véspera de completar 81 anos, Sabino morreu em seu apartamento, na Rua Canning, em Ipanema, cercado pelos seis filhos. O quadro de saúde tinha se agravado e, desde sábado, era mantido sedado.
Seu velório, no São João Batista, reuniu amigos como os escritores Moacyr Werneck de Castro e Affonso Romano de Sant'anna, o acadêmico Sábato Magaldi, o cartunista Ziraldo e o jornalista Wilson Figueiredo. O Palácio do Planalto divulgou nota lamentando a morte: "Foi com grande pesar que o presidente Lula recebeu a notícia do falecimento de Fernando Sabino. (...) Sabino continuará vivo em seus livros e na memória do povo brasileiro".
Ele nunca reclamou do câncer. Falava do beija-flor que pousava em sua janela, adorava ir na Livraria da Travessa de Ipanema, gostava de andar de ônibus, caminhar pelo calçadão e se fingir de gringo. Até um mês antes de sua morte, ainda estava escrevendo — contou o amigo Marcelo Andrade. — Fernando conservou até o fim o humor e a poesia.
Irrequieto, autor foi editor e cineasta
Autor de uma infinidade de crônicas e contos; de uma série de novelas; de uma breve autobiografia; e de quatro ficções, Fernando Sabino é acusado, por uma parte da crítica e do público leitor, de ter sido "escritor de um só romance". Referência ao seu "O encontro marcado", a grandiosa e pungente obra de geração publicada em 1957. Naquele ano, em que Guimarães Rosa legava ao Brasil a obra-prima "Grande sertão, veredas", muitos preconizaram o nascimento, também na prosa do jovem Sabino, de um dos maiores nomes da literatura brasileira.
O sucesso de crítica e público do romance de estrria, contudo, teve efeito diferente no autor. Sabino passou a dedicar-se exclusivamente à crônica e ao conto, que já exercitava, e chegou a renegar a obra tão incensada, dizendo tratar-se de "existencialice de garoto". Jogou fumaça também nas bonitas novelas de "A vida real", publicadas anos antes. Para completar, decretou, em entrevista: "A literatura morreu" .
Quando, 23 anos depois, voltou ao romance, com "O grande mentecapto", esteve longe da energia do "Encontro". O mesmo aconteceu com "O menino no espelho", uma novela infanto-juvenil de pouca força dramática.
Com "Zélia, uma paixão" (1991), uma semificção de exaltação à czarina dos malfadados anos Collor, escrita às vésperas de sua queda, Sabino foi bombardeado pela crítica, por amigos e por colegas, que o acusaram de sensacionalismo, pouco apuro literário e de estar tendo um caso com a economista. A controvérsia gerada pelo livro refletiu nas páginas da imprensa e levou-o a um grande ostracismo. Os críticos começaram a fazer o balanço: um escritor que desperdiçou sua veia de romancista privilegiando o divertissement das crônicas, gênero considerado, por uma parte de nossos luminares, como menor.
Guimarães Rosa, a esse respeito, o havia advertido: "construa pirâmides, e não biscoitos". Gente como Rubem Braga, porém, achava que eram, justamente, os biscoitos de Sabino a papa fina de sua obra.
O fato é que foram elas, as crônicas (e seus contos, que são quase crônicas), a cair no gosto maior do público. Talvez por conterem uma musicalidade única, um lirismo singelo e uma inocência cativante de menino (que ele sempre fez questão de louvar e o fez até o fim, em sua lápide). Também um humor de situações, que levou muitas de suas passagens para o anedotário.
Através das crônicas, construiu uma espécie de semibiografia contínua e reiterada (às vezes revista...), em que extraía de sua realidade parcelas de sabor e de angústia "controlada", que o transformaram num personagem muitas vezes distante da própria realidade mas paralelo a um cotidiano que parece universal. Acabou assumindo, ele mesmo, os trejeitos desse personagem, a ponto de o Fernando Sabino real e o ficcional se confundirem.
Na verdade, há, nas críticas à sua obra, muito barulho por nada: Fernando Sabino deixou um grande romance, algumas ótimas novelas, perfis interessantíssimos de grandes personalidades, divertidíssimos relatos de viagem e uma extensa e importante obra cronística.
Como disse o escritor e pesquisador mineiro Humberto Werneck: "Nenhum escritor tem a obrigação de escrever mais que um bom livro. Se todo romancista fizesse um romance da envergadura de 'O encontro marcado', o Brasil teria a maior literatura do mundo". (Arnaldo Bloch)

Jornalista: Mauro Ventura - caderno Cultura de O globo
Leia mais: Um dos quatro mineiros do apocalipse


Caricaturista: Had.

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