O metrô parou na estação Botafogo enquanto a criança mordiscava a maçã no colo da mãe: come a frutinha, Mariana! Come a frutinha! Estávamos todos cansados, vagão lotado, sete da noite. Quando o alto-falante avisou que as portas iam se fechar, a menina não perdeu tempo. Atirou a maçã lá fora. Gesto certeiro, estudado. Portas fechadas, assunto encerrado. A mãe ainda teve tempo de ver a fruta rolando na plataforma, perplexa. Nada a ser feito. O que não tem solução, solucionado está. Tchau frutinha!
Risada geral. Até a mãe riu, meio constrangida. Mariana olhou a plateia, toda-toda, envaidecida. Alguém comentou qualquer coisa sobre crianças e a mãe admitiu que a menina era “terrível”. Outro alguém contou a última travessura do neto, gargalhadas de auditório. Me lembrei de um menino no ombro do pai, tempos atrás, metrô abarrotado, hora do rush. A cada freada o menino berrava: estamos chegandoooo!!! Graças a Mariana éramos uma alegre irmandade de estranhos. Em Copacabana, o vaivém desfez o clima e a vida voltou ao normal. Mariana e a mãe saltaram na Siqueira Campos, segui para o Leblon com a alma risonha.
Gosto de conviver com estranhos. Adoro cenas vadias. Toda cidade grande traz o anônimo como coadjuvante forçoso e rotineiro. Legiões de anônimos vão e vêm como flechas entrecruzadas. É para eles que nos vestimos, que ajustamos a camisa, o penteado, é deles que esperamos reações triviais, boas ou más, seja uma cortesia ou um olhar hospitaleiro, às vezes uma grosseria ou um muxoxo indigesto. O que é um metrô lotado senão um festival de impressões mútuas? Tendências, peculiaridades, belezas e feiuras, o mundo sem os protocolos e condicionamentos de encontros marcados. O olhar de um desconhecido pode ter muitos encantos. Ninguém é totalmente indiferente ao se flagrar na mira de uma espiada ou, digamos, de uma contemplação mais atenta. Estar sozinho entre estranhos tem seu ar libertário, descompromissado, até consolador: quem nunca deu um vexame em público, grato a Deus por não ser identificado? Quem nunca revisitou memórias e sentimentos adormecidos, observando desconhecidos? Quem nunca viveu um prazer gratuito, teve um devaneio baldio ou preferiu ser anônimo na multidão, cercado por gente de quem nada se espera? Outro dia um amigo interiorano disse que evitava desavenças com conterrâneos por saber que passaria o resto dos anos com eles. De vez em quando o amigo sai pelo mundo só para ver estranhos – e ser um deles.
Viagens solitárias costumam ser um tributo ao anonimato. Quase tudo é assumidamente fortuito, provisório, avulso, alegórico. A finitude não faz rodeios, você é apenas mais um. Gente, fatos, lugares, sensações, mistérios. Aquele semblante no elevador do hotel? Nunca mais. Aquela interlocução amistosa, aquela paisagem do quarto, aquele esplendor fugaz? Adeus. Guarde nos olhos a água mais pura da fonte, canta Ivan Lins. Corra os campos pela última vez porque tudo vai virar lembrança - na melhor das hipóteses. Certa vez me senti vagamente destratado por alguém que me recebia em sua terra natal. Ciúme bobo, nada demais. A verdade sacudiu meus ombros: amanhã tudo isto será passado, seus céus e infernos não moram aqui, quais lembranças você quer levar para casa? Ou para o metrô.
Ainda vou rir bastante daquela maçã rolando na estação, a mãe, a porta, a cara triunfal de Mariana coroando nossa alegria, a repentina confraternização de estranhos até a próxima parada. Adeus, Mariana. Tomara que você encontre soluções para as maçãs que virão. Caso não as encontre, que ao menos possa rir de outras Marianas para distrair seus cansaços.
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