Pular para o conteúdo principal

Não Era Amor, Eberth Vêncio

    
      Uma mosca pousa sobre a glande ainda úmida. Possui uma carapaça brilhante, verde-metálica. Quem com ferro fere com ferro será ferido? Observo-a, desprovido de maior encanto. A simples curiosidade já contenta a mim. Qual o seu próximo passo? Aimée dormita sobre o meu peito. Sinto os pelos crisparem. Indícios de que a saliva escorre, vaza pela sua boca de lábios delicados que gritam escândalos, obscenidades. Mosquitinhos-de-banana dão o ar da graça, flutuando em voos circulares sobre a sua cabeça. Ela é doce como uma banana madura.
     Tenho planos de não afugentar a minha mosca. Estico lentamente o braço esquerdo até alcançar os óculos que me expiam da escrivaninha. Alguém aí ainda usa escrivaninhas ao lado da cama? Sou um homem antiquado, maduro como uma banana, metido com uma mulher muito mais jovem, muito mais louca, igualmente imatura. Serei também um inseto? Quisera passar pela metamorfose de que nos fala Kafka e ser pisoteado por pés tão cativantes.
     Meu cotovelo fecha-se como uma dobradiça. Cuidadoso, silente, coloco os óculos sobre o nariz. Bingo! Agora, já posso enxergá-la plenamente. Sinto cócegas na ponta. No que pensará, se é que pensa, a intrusa voadora que hora patina sobre o meu pênis triste? Calculo que, se alcançasse a “Vogue”, poderia esbofeteá-la de surpresa, espatifando a sua carcaça reluzente sobre a minha genitália. Mas, não sou afeito às dores, a nenhum tipo de dor, nem mesmo as marcas de unhas no meu dorso, nem mesmo o excesso de passado que me angustia.
     Controlo-me. Espasmos no abdome poderiam espantá-la. Contenho o riso ao me lembrar de Paul McCartney batizando como Harold o enorme louva-a-deus que pousara no seu ombro durante um show em Nantes. Gertrude. Eis o nome que escolho para a mosca ateia que me explora pelas beiradas. Abutres, geralmente, iniciam o banquete pelos olhos. Questão de capricho, de estratégia, não saberia dizer.
     O tempo passa. Gertrude passa as patinhas dianteiras sobre a cabeça cravejada com milhares de olhinhos. Mosquitos têm péssimo olfato, mas, enxergam longe. Não tenho nem uma coisa nem outra. De fato, à medida que a areia do tempo escoa, os órgãos do sentido parecem perder o sentido. Não compreendo por que cargas d´água Gertrude não optara pela fenda fumegante de Aimée. Se eu voasse, era exatamente aquele território fértil, caudaloso, suculento e nutritivo que eu teria escolhido como um porto seguro para aterrissar.
     Meus olhos enfumaçados fitam Gertrude. Ela parece mais decidida do que nunca. Percebo que ela para de sambar. É como se percebesse, finalmente, que a observo. Pode ser que tenha medo de ser morta. Não a condeno por isso. Seres humanos metem medo. Meti em Aimée a tarde inteira. Estou exausto. Gertrude é apenas uma mosca. Eu sou apenas um homem. Grandes coisas. A tendência é trucidá-la em breve com as próprias mãos.
     De repente, Gertrude bota uma pilha de ovos brancos, fresquinhos, sobre a pele lisa do meu falo flácido, cansado do batente. Sou um homem de sorte. Poderia ter sido um marimbondo. Mas, a intrometida naquele ordinário quarto de hotel era uma colorida mosca varejeira com projetos de perpetuar a espécie. Não comigo. Não sobre esse corpo combalido que ainda sofre os pudores da idade. Ainda estou vivo. Veloz como um aracnídeo, inimigo mortal de moscas, mosquitos e outros insetos voejantes, cato o copo de uísque-pela-boca e atiro o nobre conteúdo no baixo ventre. Gertrude se manda. Os ovinhos imberbes escorrem, decepcionados, estéreis, pelas virilhas. Aimée desperta. Seus olhos amendoados não disfarçam espanto.
— O que foi que houve, chérie?
— Preciso partir. E desta vez é para sempre. Adeus, Aimée.

Fonte: Revista Bula (publicado com autorização do autor) 
Imagem:Literatura-terra: artes e psicanálise

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard