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Uma Italiana na Suíça, Clarice Lispector


    
     Rosa perdeu os pais quando era pequena. Os irmãos se espalharam pelo mundo e ela entrou para o orfanato de um convento. Lá levava uma vida sóbria e dura com as outras crianças. Durante o inverno o grande casarão permanecia frio, e os trabalhos não se interrompiam. 
     Ela lavava roupa, varria os quartos, costurava. Enquanto isso as estações se sucediam. Com a cabeça raspada e o longo vestido de fazenda grosseira, às vezes, com a vassoura na mão, espiava pelos vidros da janela. Outono era a estação de que mais gostava porque não era preciso sair para vê-lo: atrás dos vidros as folhas caíam amareladas no pátio, e isso era o outono.
     Nesse convento suíço, quando um homem pisava no patamar, lavava-se o chão e queimava-se álcool em cima. Depois vinha de novo o inverno, e as mãos se avermelhavam, abriam-se em feridas, a cama gelada impossibilitava o sono, e criava sonhos acordados. 
     No dormitório escuro, com os olhos abertos sobre o lençol, ela espiava os pequenos pensamentos piscarem. De algum modo os pensamentos eram o paraíso.
     Como e por que lhe veio aos vinte anos a determinação de sair do convento, não sei, nem ela soube explicar. Mas veio decidida, e contra todos. Era uma vontade obstinada, monótona, passiva. As Irmãs se espantaram, disseram que ela iria para o Inferno. Mas como Rosa não retruca sequer com um argumento, venceu. Saiu, foi empregar-se como criada.

     Saiu com sua pequena trouxa, a cabeça raspada, a saia nos calcanhares. “O mundo me pareceu…” — e ela não soube explicar.

     Com seu rosto de italiana do Sul, os olhos redondos e as formas que tardavam a se afirmar, foi morar com uma família recomendada. Lá permanecia dia e noite, meses a fio, sem ir à rua. Explicou-me que naquela época “não sabia sair”. Usava apenas a maravilha do inverno fora do paraíso: espiava tudo pelas janelas abertas e ninguém diria se estava contente ou triste. Seu rosto ainda não sabia exprimir. Espiava pela janela aberta com a minúcia e a atenção de quem reza, com os braços cruzados e as mãos metidas nas mangas opostas.

     Numa tarde em que tudo lhe pareceu vasto demais — uma tarde livre e sem trabalho era quase pecaminosa — sentiu que devia se aplicar, ter um sentimento mais limitado e mais religioso: desceu as escadas, entrou na sala e tirou um livro da estante. Subiu de novo, sentou-se numa cadeira sem se encostar, pois ainda não aprendera a se dar prazeres, e começou a ler com grande austeridade. Mas a cabeça esférica, onde os cabelos já nasciam curtos e rígidos — a cabeça pôs-se então a flutuar. Fechou o livro, deitou-se, cerrou os olhos.

     Esperaram-na para servir o jantar, mas ela não descia. Foram buscá-la. Seus olhos estavam crescidos, quentes, imóveis: ela ardia em febre. A dona da casa passou a noite a velá-la, mas nada havia a fazer, ela não se queixava, não pedia nada, e a febre a consumia. De manhã estava emagrecida, de olhos menos abertos. Assim passaram mais um dia e mais uma noite. Então chamaram o médico.

     O médico perguntou o que lhe sucedera, pois ali estavam todos os sintomas de febre nervosa. Rosa não dizia nada, nem lhe ocorreria dizer, não estava habituada. Foi quando o médico olhou por acaso para a cabeceira da cama e viu o livro. Examinou-o e olhou-a espantado. O livro se chamava Le corset rouge. Ele disse que Rosa não podia de modo algum ler um livro assim. Que mal saíra do convento, e que sua inocência era perigosa.    Rosa não respondia. Ele disse:

     — Você não deve ler essas coisas, elas são mentira.

     Só então Rosa abriu um pouco os olhos, pela primeira vez. O médico então jurou que o livro só dizia mentiras. Ele tinha jurado…

Então ela suspirou, sorriu tímida e triste:

     — É que eu pensava que tudo que se escreve e que se publica num livro é verdade, disse olhando com tanto pudor o primeiro homem bom.

     O doutor disse — e quem pode imaginar o tom com que disse:

     — Mas não é.

    Ela dormiu magra e pálida. A febre diminuiu, ela se levantou. Aos poucos, com o tempo, as pessoas diziam: você tem cabelos muito pretos. Rosa dizia, tocando-se: é mesmo.

     De como, aos quarenta anos, ficou tão alegre, não sei explicar. Cada gargalhada. Sei também que uma vez quis se suicidar. Não porque saíra do convento. Mas por amor. Ela explicou que naquela época do amor não sabia que “tudo era assim mesmo”. Assim como? não me respondeu. 
     Hoje, dez anos mais velha que seu noivo, com quem dorme, ela ri sob a grande cabeleira e diz: não sei mesmo por que é que gosto mais do outono do que das outras estações, acho que é porque no outono as coisas morrem tão facilmente.

     Também diz: não sou muito inteligente, tenho a impressão de que a senhora é mais do que eu. Também diz: “a senhora alguma vez já chorou como uma boba e sem saber por quê? pois eu já!” — e cai na gargalhada.


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