Venho perdendo a vista. Fecho o olho direito e já só enxergo
sombras. Tudo me confunde. Caminho agarrada às paredes.
Leio com esforço, e apenas sob a luz do sol, servindo-me de
lupas cada vez mais fortes. Releio os últimos livros, os que me
recuso a queimar.Andei queimando as belas vozes que me
acompanharam ao longo de todos estes anos.
Às vezes penso: enlouqueci.
Vi, do terraço, um hipopótamo dançando na varanda do
andar ao lado. Ilusão, bem sei, mas ainda assim ví-o. Pode ser
fome. Tenho-me alimentado muito mal.
A fraqueza, a vista a vista que se esvai, iso faz com que tropece nas
letras, enquanto leio. Leio páginas tantas vezes lidas, mas elas
são já outras. Erro,ao ler, e no erro, por vezes
encontro incríveis acertos. No erro me encontro muito.
Algumas páginas são melhoradas pelo equívoco.
Um fulgor de pirilampos pirilampeia pelos quartos. Movo-me
como uma medusa, nessa bruma iluminada. Afundo-me nos
meus próprios sonhos. Talvez isto se possa chamar de morrer.
Fui feliz nesta casa, certas tardes em que o sol me visitava
na cozinha. Sentava-me à mesa. Fantasma vinha e pousava a cabeça no meu regaço.
Se ainda tivesse espaço, carvão, e paredes disponíveis,
poderia escrever uma Teoria Geral do Esquecimento.
Dou-me conta de que transformei o apartamento inteiro
num imenso livro. Depois de queimar a biblioteca, depois de eu
morrer, ficará só a minha voz.
Nesta casa todas as paredes têm a minha boca.
Em: Agualusa, José Eduardo,Teoria Geral do Esquecimento, Ed. Foz, Rio de Janeiro 2012,págs. 77-78
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