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Mostrando postagens de janeiro, 2018

A Cegueira (E Os Olhos do Coração), José Eduardo Agualusa

Venho perdendo a vista. Fecho o olho direito e já só enxergo  sombras. Tudo me confunde. Caminho agarrada às paredes. Leio com esforço, e apenas sob a luz do sol, servindo-me de lupas cada vez mais fortes. Releio os últimos livros, os que me recuso a queimar.Andei queimando as belas vozes que me  acompanharam ao longo de todos estes anos. Às vezes penso: enlouqueci. Vi, do terraço, um hipopótamo dançando na varanda do andar ao lado. Ilusão, bem sei, mas ainda assim ví-o. Pode ser fome. Tenho-me alimentado muito mal. A fraqueza, a vista a vista que se esvai, iso faz com que tropece nas letras, enquanto leio. Leio páginas tantas vezes lidas, mas elas são já outras. Erro,ao ler, e no erro, por vezes encontro incríveis acertos. No erro me encontro muito.

Dedicatória (3) Aos Outros Rios, Ao Mar, Luciano Maia

Aos Outros Rios Também aos grandes rios forasteiros Iracema- Lagoa de Messejana Alguns dos quais embora tão distantes. Aos seus filhos e pais, desde os ribeiros Menores aos caudais mais importantes. Aos nordestinos rios, companheiros De dias parcos, tempos lancinantes Aos que mostram ao sol suas areias As hídricas palavras destas veias. Ao Mar Enfim, ao mar da terra de Iracema Que acolhe estas águas irrisórias Dedico o meu atávico poema (sincero contributo das memórias dos sertanejos lídimos da gema) E aos vaqueiros-do-mar, estas estórias Estes versos de múltiplo elemento: De terra e fogo e água e sol e vento. In: Maia, Luciano, Jaguaribe Memória das Águas, Governo do Estado do Ceará 2010 Leia também: Dedicatória 1 aos cantadores e aos repentistas e Dedicatória 2 Autor do modelo guia da estátua: artista plástico Alexandre Rodrigues

Por Que Ler A Literatura Como Turismo?

          Sempre fiquei incomodada com a expressão arregalada e a voz cheia de admiração das pessoas dizendo:      - Você é filha de João Cabral!      Não sou "boazinha". Isso pode ser confirmado por quem me conhece. Então, a partir do dia em que ouvi essa frase pela enésima vez, comecei a perguntar a quem a proferia:      - Qual o poema dele que você prefere?      Depois de perguntar isso, instalava-se geralmente um silêncio incômodo  que me fez perceber que João Cabral era uma figura mítica, ensinado nas escolas e adotado nas provas  de literatura do vestibular, mas depois esquecido e nunca mais lido, a não ser por quem fizesse letras.      Essa reação me incomodava, porque tenho certeza de que, quando ele escrevia, fazendo com que eu e meus irmãos andássemos quase na ponta dos pés e falando baixo porque "seu pai está trabalhando", ele queria ser lido e buscava, como qualquer ser humano, apreço e reconhecimento por seu trabalho, que acontecia apenas

A Mulher e a Casa, João Cabral de Melo Neto

Tua sedução é menos de mulher do que de casa: pois vem de como é por dentro ou por detrás da fachada. Mesmo quando ela possui tua plácida elegância, esse teu reboco claro, riso franco de varandas, uma casa não é nunca só para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possível contemplá-la. Seduz pelo que é dentro, ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas; pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda;

Saudade, Gilka Machado

De quem é esta saudade que meus silêncios invade, que de tão longe me vem?    De quem é esta saudade, de quem?

Zemrude, Ítalo Calvino

      É o humor de quem a olha que dá a forma à cidade de Zemrude. Quem passa assobiando, com o nariz empinado por causa do assobio, conhece-a de baixo para cima: parapeitos, cortinas ao vento, esguichos. Quem caminha com o queixo no peito, com as unhas fincadas nas palmas das mãos, cravará os olhos à altura do chão, dos córregos, das fossas, das redes de pesca, da papelada. Não se pode dizer que um aspecto da cidade seja mais verdadeiro do que o outro, porém ouve-se falar da Zemrude de cima sobretudo por parte de quem se recorda dela ao penetrar na Zemrude de baixo, percorrendo todos os dias as mesmas ruas e reencontrando de manhã o mau humor do dia anterior incrustado ao pé dos muros. Cedo ou tarde chega o dia em que abaixamos o olhar para os tubos dos beirais e não conseguimos mais distingui-los da calçada. O caso inverso não é impossível, mas é mais raro: por isso, continuamos a andar pelas ruas de Zemrude com os olhos que agora escavam até as adegas, os alicerce

Uma Carta e o Natal, Carlos Heitor Cony ( última crônica)

     Este será o primeiro Natal que enfrentaremos, pródigos e lúcidos. Até o ano passado conseguimos manter o mistério —e eu amava o brilho de teus olhos quando, manhã ainda, vinhas cambaleando de sono em busca da árvore que durante a noite brotara embrulhos e coisas. Havia um rito complicado e que começava na véspera, quando eu te mostrava a estrela onde Papai Noel viria , com seu trenó e suas renas, abarrotado de brinquedos e presentes.      Tu ias dormir e eu velava para que dormisses bem e profundamente. Tua irmã, embora menor, creio que ela me embromava: na realidade, ela já devia pressentir que Papai Noel era um mito que nós fazíamos força para manter em nós mesmos. Ela não fazia força para isso, e desde que a árvore amanhecesse florida de pacotes e coisas, tudo dava na mesma. Contigo era diferente. Tu realmente acreditavas em mim e em Papai Noel.

O Cão Sem Plumas, João Cabral de Melo Neto

I. Paisagem do Capibaribe A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada. O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão. Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água. Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos polvos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras. Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes. Jamais se abre em peixes. Abre-se em flores pobres e negras como negros. Abre-se numa flora suja e mais mendiga como são os mendigos negros. Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro. Liso como o ventre de uma cadela fecunda, o rio cresce sem nunca explo