No início era uma dúzia de pés-rapados, mas logo se organizaram socialmente em das castas: os pés-de-boi e os pés-quentes. Aos primeiros cabia não arredar pé do pé-de-pilão; aos segundos, cuidar do pé-de-meia.
Cada grupo cumpria ao pé da letra a sua tarefa. Afinal, o lucro era dividido em pé de igualdade. Não havia ódios e todos faziam pé firme no regime.
A sociedade cresceu, porque dava pé. E evoluiu: inventaram o pedal (depois, a roda); o pé-de-moleque revolucionou a culinária; encontraram a cura pro pé-de-atleta; apareceram as ciências (Pediatria, para tratar dos pezinhos dos nenês, e Pedagogia, para educar do pé-de-chumbo ao pé-de-porco); nas letras, fizeram sucesso os versos de pé-quebrado; construiram-se os famosos jardins suspensos dos igarapés; o Homem sonhava com o futuro, ao pé do fogo.
Enquanto isso, os outros povos nem chegavam aos pés desses bons de pés em matéria de Cultura e História. As demais tribos viviam em pé de guerra umas com as outras. As cidades dos pés juntos surgiam aos montes, porque havia muita gente com o pé na cova.
Então, com essa ameaça, a Sociedade ficou com um pé atrás.
E o pior aconteceu, no grande arrasta-pé anual, uma festa onde o prato principal era o bife a pé.
Os nômades, bárbaros pés- rachados, atacaram em silêncio, na ponta dos pés, enquanto os pés-de-valsa dançavam.
A sociedade foi atacada a pé-de-cabra e pé-de-mesa. Mas, rápida como um pé-de-vento, ela se defendeu. Com um pé nas costas, de tão forte que era.
A derrota dos assaltantes, uns peraltas, foi num pé só e eles nem tiveram tempo de pôr o pé no estribo. O azar foi tanto que é provável que o golpe tenha sido dado com o pé esquerdo.
E foram escravizados, apesar de baterem pé que que queriam era dar no pé dali. Jamais tiraram o pé do barro.
Mas o problema mesmo foi conviver com os novos habitantes da Sociedade, no pé em que as coisas estavam: os escravos metiam os pés pelas mãos, não faziam higiene após irem aos pés e se recusavam terminantemente a participar de lava-pés e beija-pés (principalmente sem a primeira parte do ritual).
O que a Sociedade podia fazer? Não largar o pé deles? Já havia transtornos de sobra: epidemia de bicho-de-pé, a corrupção na cobrança de pedágio aos escravos pés chatos e a falta de um pé de apoio para não pisar em falso naquela anarquia.
Para complicar, havia pederastia - um costume introduzido (disse bem) pelos bárbaros, que consistia em esfregar os pés nos pés de outra pessoa e ir subindo, até gozar pé por pé.
E também não se podia mais distinguir quem eram os pedintes ( com seus chapéus rotos nos pés tortos, esmolando para comprar pés-de-patos e tomar pé no rio), tamanha era a balbúrdia geral. A Sociedade ia perecer. A prova disso eram os pés -de- galinha nas mulheres com pés de anjo.
Ah, pensaram os governantes, cairiam, sim, mas cairia de pé.
Eles ainda tinham os pés na terra, embora quisessem pô-los na estrada. Planejaram uma caminhada de pedestres ( a pé, obviamente), sobre os miseráveis. Iriam pisotear os invasores! Acabariam com os pés frios da sua antiga paz e felicidade!
Ao pé de dois planos, avançaram. A turba anárquica, de pé fincado mas distraída, nem percebeu que a Sociedade vinha pé ante pé para desmanchar com os pés o que eles, os estúpidos, haviam feito com as mãos.
Quando se deram conta, era tarde para ficar de pé. Ficaram foi petrificados, sem poder apertar o pé. Aí levaram um pé no saco.
A batalha terminou em seguida e a Sociedade, em pedaços, tentou se reerguer. Em vão: seu pedestal tinha caído de quatro pés. Desesperados e meio pernetas, saíram perambulando sem saber ara onde.
Até hoje estão peregrinando.
Mas de vez em quando você pode perceber, ao pé do ouvido, um sinal daquela civilização: é o som de indivíduos da Sociedade trocando pontapés entre si.
Nada mais pedante.
In: Punidos Venceremos. Fraga, Ed.Codecri 1981, págs.28-29
Nota: o blog manteve a grafia original.
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