Minha segunda mulher eu encontrei sozinho, ou quase. Ela me foi oferecida, mas era preciso seduzi-la, brincar com ela e envolvê-la para a merecer e conservar. Apliquei-mea isso com batante energia.
Agora que cheguei aos quarenta, convivo bem com uma e outra. Minhas duas mulheres não se entendem. Há um problema de comunicação. Elas são obrigadas a passar por mim para se falarem e até para brigar.
Tenho preferência pela segunda, porque ela é estrangeira à tribo, e me ensinaram a ser cortês e hospitaleiro com os estrangeiros, particularmente comas estrangeiras. Minha cortesia não passa de aparência. Na verdade, sou violento. Gosto de dobrar essa estrangeira. Mas devo confessar que, muitas vezes, ela é quem leva a melhor. Ela me domina e ue me deixo levar. Eu sei: qualquer resistência é inútil. A prova: é ela quem fala por mim e expressa as palavras e a terra natal.
A outra às vezes se insurge; toma o poder sem que eu perceba e se insinua nas dobras íntimas da outra face.
Embora não se comuniquem, elas se enfrentam e armam emboscadas uma para a outra. Adoro quando tudo se agita, quando há troca de flechas, de frases e de imagens. Uma vira a outra e ambas zombam de mim. Elas se aliam contra mim. Vejo-me afinal sem recursos, isolado, despojado e abatido. Nessa hora, consulto o dicionário. É um amigo;mas um tanto rígido. Não tem muito humor. Ele me informa, mas não me ajuda em meus conflitos conjugais. É a favor da ordem e da moral. É justo e inequívoco, frio e intransigente. Ele me deprime e me desencoraja. Eu sou amoral. Isso não tem perdão, sobretudo num dicionário.
Então, opto pelo silêncio. De minha janela, observo o silêncio. Vejo-o passar pela rua. vou ao seu encontro; ele me envolve e eu escuto. Muitas vezes ele é enganador. Levanta problemas que é preciso adivinhar. Eu grito.
Grito para precipitar os acontecimentos. Nessa hora, minhas duas mulheres, assustadas, intervêm e cada uma se dispõe a me acalmar, a me dar o que me falta, a ternura e o amor, o orgasmo e o sol.
Tão logo me sacio, elas me abandonam e vão se dar a outros.
Foi por isso que um dia resolvi ter uma escrita própria, que, boa ou ruim, bonita ou feia, simples ou complicada, iria ser minha, parecer-se comigo e satisfazer minha intimidade mais secreta.
Enquanto isso, fui tentado por uma terceira história de amor. Subitamente, deparei-me com alguém estranho e ambíguo; caí ma ilusão e no erro. Era noite;não lhe vi bem o rosto. Era uma aparição, um fantasma, uma espécie de travesti que me disse: "Vai, vai reencontrar tuas mulherzinhas! Tu as satisfazes, pelo menos? ..."
Desde então, minha fidelidade é exemplar: eu vou de uma à outra e sei que dou mais à segunda porque ela é estrangeira, e as estrangeiras eu a prendi a amar.
Esses amores me enriquecem. Não pago imposto. quando o fiscal da receita vem ver o que acontece, não entende grande coisa, perde-se nesta casa de muitos andares e muitas portas, e vai embora jurando que da próxima vez conseguirá me acuar.
Apaixonado, polígamo e fiel! Isso o irrita.
Às vezes me acontece sair da enorme casa. Aproveito-me do sono da primeira para levar a estrangeira a passear pelas ruelas de medina. Ela não usa djelaba nem véu no rosto. Caminha dando-me o braço; está nua. Não por ser impudica ou malcriada, mas por ser tão atraída pelos tecidos da minha velha memória, pelas cores loucas das minhas raízes, que se cobre com elas à medida que entramos no labirinto de medina e da infância árabe.
Minha primeira esposa não se deixa facilmente despojar de suas vestes. É altiva e muda em seu orgulho. Quando tento levá-la a um jantar dançante ou a uma festa-surpresa, empaca e se recusa a me seguir. Não sem violência, lembra-me suas origens, nobres e sagradas inscritas no Livro santo, o Corão.
Nisso a coisa é séria! Fica difícil brincar! O Corão é um milagre, inimitável e intocável. Ele me intimida. Ele me esmaga pela inacessível beleza de sua poesia.
Então eu volto para a outra; e me liberto. Ela me acolhe de braços aberto, me dá seus lábios, me cobre com seus cabelos e nós fazemos amor na luz, acompanhados pela música de Vivaldi ou de Bach.
Ela me ama. Ela me ajuda a viver. Temos conflitos. Mas "só a morte é tão rasa"!
Tahar Ben Jelloun, Rio de Janeiro, 2002, págs,167-170
Algumas obras do autor editadas em português (Estante Virtual e Liv. Saraiva):
Moha o louco Moha o sábio
Os frutos da dor
Partir
O último amigo
Felicidade
O primeiro amor é sempre o último
O menino da areia
O racismo explicado à minha filha
O racismo explicado aos jovens
As cicatrizes do atlas
O Islamismo explicado às crianças
Algumas obras do autor editadas em português (Estante Virtual e Liv. Saraiva):
Moha o louco Moha o sábio
Os frutos da dor
Partir
O último amigo
Felicidade
O primeiro amor é sempre o último
O menino da areia
O racismo explicado à minha filha
O racismo explicado aos jovens
As cicatrizes do atlas
O Islamismo explicado às crianças
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.