Pular para o conteúdo principal

Aprendizagem, Flávio Carneiro

- Mãe, cabelo demora quanto tempo pra crescer? 
- Hã? 

- Se eu cortar meu cabelo hoje, quando é que ele vai crescer de novo? 
- Cabelo está sempre crescendo, Beatriz. É que nem unha. 
A comparação deixa a menina meio confusa. Ela não está preocupada com unhas. 
- Todo dia, mãe? 
- É, só que a gente não repara. 
- Por quê? 
- Porque as pessoas têm mais o que fazer, não acha? 
A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente ouve e pronto. Prefere não responder. 
- Você é muito ocupada, não é, mãe? 
- Hã? 
- Nada, não. 
A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário.

 
Enquanto isso, Beatriz corre até o quartinho de costura, pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da mãe, mas a verdade é que ficou meio torto. 
"Nada, não cresceu nada", ela conclui, guardando a fita. E já tem uma semana! 
Depois volta para onde está a mãe, que agora lustra os móveis. 
- Mãe, existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer? 
- Mas de novo essa conversa de cabelo! Não tem outra coisa pra pensar não, criatura? 
Sobre essa pergunta não há dúvida: é do tipo que você não deve responder. 
A mãe continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está pronto ainda. 
- Mãe! 
- O que foi? 
- É que eu estava aqui pensando. 
- Pensando o quê? 
Beatriz não responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas. 
- Vai, fala logo. 
- Quando a gente faz uma coisa, sabe, e não dá mais para voltar atrás, entendeu? 
- Não, não entendi. 
Ela abaixa a cabeça, dá um tempinho e resolve arriscar: 
- Então, se você não entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo? 
- Ai, meu Deus! 
Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca. 
Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela: 
- Não liga, não. Cabelo de boneca é assim mesmo, cresce devagar, viu? 
E com um carinho: 
- Foi minha mãe que me ensinou.

Flávio Carneiro, autor deste conto, é roteirista, ensaísta e professor de Literatura. Tem 11 livros publicados, dentre eles, A Distância das Coisas (Editora SM), vencedor do III Prêmio Barco a Vapor.

Fonte:http://revistaescola.abril.com.br/
Imagem: www.macieltelma.wordpress.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard