Não aprendi a colher a flor sem esfacelar as pétalas. Falta-me o dedo menino de quem costura desfiladeiros. Criança, eu sabia suspender o tempo, soterrar abismos e nomear as estrelas. Cresci, perdi pontes, esqueci sortilégios. Careço da habilidade da onda, hei-de aprender a carícia da brisa. Trêmula, a haste me pede o adiar da noite. Em véspera da dádiva, a faca me recorda, no gume do beijo, a aresta do adeus. Não, não aprenderei nunca a decepar flores. Quem sabe, um dia, eu, em mim, colha um jardim? - Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007. Imagem: Regina Porto