Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua
cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na
cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado. Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela
janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a
passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um
vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente,
anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos
mudam-se para Curitiba
Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz
um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece,
incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz.
Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.
Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas.
Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta.
Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher
propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.
Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô,
ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e,
olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada
frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a
carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura.
Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta
dos dedos.
— Que vai fazer?
— Queimar.
Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha
caída no chão e prossegue a leitura do jornal.
A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.
— Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.
O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana
passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a,
fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.
Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:
— Não vai ler?
Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos
anos, azuis como no primeiro dia.
— Já sei o que diz.
— Por que não queima?
É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o
envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o
jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.
Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na
sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.
Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser
engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá
está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto
debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a
legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e
assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente
enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o
regresso de Ulisses?
No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras... Imagina um plano? Guarda a
carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no
bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã
examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo
branco — não achou.
Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontra-lo no portão
— no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem
sinais de dente... Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos.
Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o
padeiro, moços, de sorrisos falsos.
Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou
seca... Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando,
errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.
Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na
sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a
cortina machucada pela mão raivosa.
Afinal compra um revólver.
— Oh, meu Deus... Para quê? — espanta-se a companheira.
Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes. Não fará
toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher
— o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de
desmanchar a linha.
Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente
os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe
onde está a mulher.
De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na
sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de
mais um dia?
Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube
por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.
Havia um primo no passado... Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo.
No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e
lê, entre dentes, uma por uma.
Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente
falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no
fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la. No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante
das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa.
Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa.
Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se
pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?
Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra
dos vasos: seca.
Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na
mão, vestido brando ensangüentado. Deixa-a de olho aberto.
Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do
suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora.
Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de
cobri-lo, vai-se embora.
Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia
concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.
Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É
sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de
repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas...
Por engano na sua.
Um meio de saber, envelhecerá tranqüilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher
morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e
janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado,
ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma
pocinha d’água no fundo da cova.
Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos
anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri
desdenhoso da sua vaidade, ainda morta...
Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo”
—, com mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na
poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.
Em Vozes do Retrato, Editora Agir, São Paulo, 1998, pág. 52.
Nota: o blog manteve a grafia original
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