O
menino Ricardo estava feliz. Enfim viveria definitivamente com o pai. Com 14
anos, quase não tinha lembranças físicas de seu pai, o grande escritor
Graciliano Ramos. Custou a entender a razão de que só ele ficara em Alagoas,
criado pelo avô Américo e sua tia, desde os sete anos de idade, enquanto suas
irmãs tinham viajado com a mãe para se encontrarem com o pai. Trazia na memória
as férias que passara aos 10 anos no Rio de Janeiro e levou orgulhoso seu
boletim para mostrar a seu pai, mas este disse apenas um lacônico “Está bom”.
Agora, aos 14 anos, seria diferente. Estaria com as irmãs Clarita e Luiza e a
mãe Heloisa. Já não teria que se agarrar às cartas para ter contato com pai e
mãe. Mesmo com a grande distância, nutria um carinho e admiração pelo
pai. Até quando os familiares tentavam poupá-lo das notícias cruéis do tempo da
prisão de seu pai, ele acompanhava quieto e preocupado cada momento. Desde
antes da viagem de sua mãe, ficava sempre com os ouvidos prontos para ouvir as
conversas em tom baixo, e lia às escondidas as cartas do pai para sua mãe, tia
e o avô. E com isso ia construindo uma imagem paterna em seu imaginário.
A viagem ao Rio foi agradável. Os solavancos da longa viagem em estradas esburacadas foram insuficientes para tirar-lhe o entusiasmo. Não esperava demonstrações exageradas de carinho por parte de seu pai, e na sua imagem criada, acabou preferindo que fosse assim. Eram nos pequenos gestos que o pai mostrava carinho e cuidado com cada um de seus filhos. Mais de uma vez viu seu pai, enquanto escrevia, reclamar do barulho das brincadeiras de suas irmãs: “Suas pestes! Excomungadas do diabo!”. Mas a seguir, lia histórias para elas e brincava carinhosamente com os cabelos das filhas. Mas não deixava de ameaçar as meninas, que se continuassem com o barulho, ia contar uma história de terror para elas, em que duas meninas eram deixadas num parque abandonado. E soltava uma gargalhada, compartilhada com as filhas. Assim que chegou, Ricardo já pode perceber do interesse do pai pelos seus estudos. Quando ouviu de Ricardo que queria também escrever como ele, o pai ficou quieto. O olhar de Graciliano depois de ouvir o desejo do filho em se tornar escritor e o fato de não ter dado um sermão o criticando, foi interpretado por Ricardo como uma aprovação.
Aquele
dia parecia especial. O pai recebera um convite do jornalista Mario Filho para
ir a um jogo de futebol. Ouviu o resmungo do pai ao ler o convite. “Esse jogo é
só pontapé”. Sua mãe não deu força à rebeldia de seu pai. Ricardo pode
ouvir sua mãe falar: “Grace, largue de ser rabugento e vai lá. Você não estará
sozinho. Zelins estará também.” Depois de refletir, dando umas baforadas
no seu inseparável cigarro, Graciliano decidiu: “Está certo. Eu vou. Mas levo o
Ricardo comigo.” Ao ouvir o pai, Ricardo vibrou.Ficou quieto e continuou
na leitura do livro que recebera de presente, cujo autor era o nome que fora
citado por sua mãe, o Zelins, que tratava-se do escritor José Lins do
Rego, o qual Ricardo logo percebeu que era um grande amigo do pai, mesmo
com o tratamento às vezes rude com ele. Numa dessas vezes, Zelins piscou para
Ricardo:
-
Essa é uma forma diferente de seu pai dizer que gosta de mim. Eu não te
disse antes. Já tinha me simpatizado contigo, menino, e não só porque você é
filho de um grande amigo. Tem um motivo a mais: seu nome é o mesmo de um
personagem de um de meus livros. Amanhã te presenteio “O moleque Ricardo”.
A
mãe começou a arrumar o filho. “Vai com o melhor terno. Você estará diante de
muita gente importante, grandes escritores”. O pai logo deu outro
conselho. Que soubesse tirar o de melhor de cada um e jogue fora o que não
preste. “Não pense que o fato de sermos escritores nos transforma nas melhores
influências”. Ricardo a tudo ouvia com atenção, contando como um
aprendizado cada palavra dita por seu pai. Também não julgue que, como sou
comunista, você só deve aprender com comunistas. Pelo contrário, tome muito
cuidado com alguns. Nem torça o nariz a todo reacionário – e Ricardo anotou a
palavra para depois procurar seu significado. Aliás, hoje nos encontraremos com
um bom representante. Fique de olho nele, pois ele escreve muito bem. É um
reacionário filho da puta de tão bom.
José
Lins apareceu na velha pensão em que a família do menino morava. Cumprimentou
dona Heloisa, conferiu a gravata de Ricardo e lá foram ao estádio das
Laranjeiras no seu automóvel. Antes, passaram numa banca de jornal, onde
Graciliano comprou o JornalDiretrizes, onde se lia na capa uma chamada
falando da campanha da guerra, dizendo que o conflito estava próximo do fim.
Chegando ao estádio, dirigiram-se à Tribuna de Imprensa. Ricardo a tudo
observava, com entusiasmo tamanho que fazia seus olhos brilharem. Via as
pessoas carregando bandeiras. Sempre ouvia seu pai falar que o football era um
esporte que não emplacaria na nossa terra, que nossos jovens eram muito
mirrados e que deviam se dedicar à capoeira ou algum esporte de corrida.
Ricardo notou que o pai olhava atento em volta das arquibancadas. Viu que as
bandeiras da maioria do estádio eram das cores verde, grená e branco, as mesmas
da bandeira que tremulava do alto do estádio. As outras eram pretas e brancas.
Quem joga hoje, Zelins? José Lins do Rego brincou com Graciliano, falando que
ele escamoteava o sentimento pelo esporte. “Graça, não finja indiferença.
Você sabe muito bem que jogam Fluminense e Botafogo”. Graciliano soltou um
muxoxo. “Se ao menos o América jogasse, teríamos bandeiras vermelhas”. José
Lins e Ricardo sorriram ao perceberem que o pai não só sabia quais times
jogavam, como sabia as cores das bandeiras de cada um. Chegaram depois os
irmãos Mário Filho e Nelson Rodrigues, que cumprimentaram entusiasticamente
José Lins. Mário Filho disse para José Lins:
-
Já que nosso Flamengo não está em campo, vamos torcer para quem?
-
Qualquer um, Mário. Seremos campeões, pois temos Zizinho. Mas para implicar com
seu irmão, vamos torcer para o alvinegro.
Nelson
Rodrigues, que a tudo olhava, foi cumprimentar Graciliano, mas parou ao notar a
presença de Ricardo. José Lins explicou. É o filho do Graça que morava nas
Alagoas. Para que time torce? – perguntou Nelson Rodrigues. Ricardo disse que
não tinha time, mas que podia escolher um time naquele jogo. Recebeu de volta o
que poderia ser uma ofensa, mas ele anotou num papel como se fosse um
ensinamento: “Não importa para quem você escolher hoje. O jovem só pode ser
levado a sério quando fica velho”. Graciliano se dirigiu a Nelson Rodrigues:
-
Como você está, seu reacionário safado? – e deu uma piscada para Ricardo, que entendeu
que ele era o tal que o pai havia falado antes.
Minutos
depois, Ricardo ouve um burburinho no estádio, com as pessoas se
levantando. Ricardo percebe que as pessoas olham para uma tribuna
próxima. Ricardo então ouve seu pai colocar a mão na boca em forma de concha e
soltou um som:
-
UUUUUUUUUUUUU! UUUUUUUUUUUUU!
José
Lins aconselhou Graciliano:
-
Calma, homem. Quer arrumar motivo para te mandarem de volta à prisão?
-
Está bom. É que eu não me contive. Maldito caudilho!
Ricardo
entendeu que quem chegara era o homem que sempre tinha seu nome citado nas
cartas de seus pais: Getúlio Vargas.
Começou
o jogo e os adultos distribuíam doces e balas a Ricardo. Estava adorando
aquilo. Todos lhe davam atenção, mas ele não deixava de prestar atenção ao
jogo. Tudo que lia nos jornais alagoanos parecia que era melhor ainda. Os
craques que tinham seus nomes entoados pelos narradores de rádio pareciam
mágicos. E o colorido das arquibancadas o deixava ainda mais fascinado. Ricardo
também percebeu que não era só ele que fazia anotações num bloquinho.
Todos eles, incluindo seu pai que nunca mostrou interesse pelo esporte,
anotavam tudo. Ricardo percebeu que aquilo era uma prática dos escritores.
Pensou então que estava no caminho certo. De repente ouviu do pai um comentário
solitário: “Parece que esse jogo não é só pontapé na bola. Tem um quê mágico.
Havia emoção, uns passos de dança, um tango argentino com um toque do samba
brasileiro”. Propôs então um acordo ao filho: “Você torce para o time do
reaça e eu para o alvinegro. Se seu time
vencer, te levo para trabalhar comigo e vou te ensinar o meu ofício”. Mal
terminou de falar e Ricardo dizer “Combinado”, o menino volta os olhos para o
campo ao ouvir um ruído crescente e perceber várias pessoas se levantando, e então
gol do time de branco. E Ricardo comemorou como se já torcesse para o
Fluminense desde os tempos em que vivia em Maceió. De soslaio, Ricardo notou
que seu pai estava cada vez menos alheio ao jogo. Por um instante achou que viu
um brilho juvenil e moveu os braços como se estivesse torcendo quando o
alvinegro foi ao ataque.
No
intervalo do jogo, Nelson Rodrigues fumava um cigarro. Ricardo aproximou-se
dele, tomou coragem e bateu em seu ombro:
-
Seu Nelson, por que você e seu irmão torcem para times diferentes?
-
Menino, você devia perguntar isso a ele e não a mim. Eu diria que ele passou a
torcer pelo Flamengo por conta da eterna briga entre irmãos, um querendo ser
diferente do outro. Mas saiba de uma coisa. Outros times se dizem também
tricolores, mas tricolor é o Fluminense. O resto são todos times de três cores.
E
Ricardo anotou mais uma frase. Continuou a vibrar com cada momento daquele
jogo.
Qualquer movimento no campo e na arquibancada lhe dava prazer. Porém,
mais do que tudo, o que mais gostou, foi quando seu pai fez algo que não
costumava fazer desde que chegou ao Rio. Ricardo olhava atentamente o campo,
quando sentiu um toque em sua cabeça da mão esquerda de seu pai. Depois,
colocou a mão em seu ombro esquerdo, abraçando-o.
-
E aí, moleque? Está gostando do jogo, não é?
-
Sim, me simpatizei com o time de branco. Acho que vou ser Fluminense.
Semana que vem tem jogo contra o Vasco. Seu Nelson me chamou. Posso ir
com ele?
O
pai disse que não achava boa ideia. Ricardo já baixava o olhar, quando o pai
continuou:
-
Deixa que eu te trago.
Conto classificado em 2º lugar no VIII Prêmio UFF de Literatura, em 2014.
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