A visão daquela morte me fez lembrar meu próprio fim. Chegara minha vez de me reassombrar. Acenei, triste, para os velhos. Me despedi da luz, das vozes, do cacimbo. Me comecei a internar na areia, pronto a me desacender. Mas, em meio disso, hesitei: o caminho do regresso não podia ser aquele. Aquele chão já não me aceitava. Eu tinha me tornado num estrangeiro no reino da morte. Agora, para atravessar a derradeira fronteira eu carecia de clandestinidade. Como me transitar, transfinito?
Recordei ensinamentos do pangolim. A árvore era o lugar do milagre. então, desci do meu corpo, toquei a cinza e ela se converteu em pétala. Remexi a réstia do tronco e a seiva refluiu, como sémen da terra. A cada gesto meu o frangipani renascia. E quando a árvore toda se reconstituiu, natalícia, me cobri com a mesma cinza em que a planta se desintactara. Me habilitava assim a vegetal, arborizado. Esperava a final conversão quando um fiozinho de voz me fez parar:
- Espere, eu vou consigo, meu irmão.
Era Navaia Caetano, o velho-menino. O tempo já lhe tinha confiscado o corpo. Estava encostado no tronco, perdia as naturais cores da vida. E repetia:
- Por favor, meu irmão.
Me chamava de irmão. O velho me ratificava de humano, sem culá de eu, em vida, não te sido outro. Me estendeu a mão e pediu:
- Me toque, por favor. Eu também quero ir...
Segurei sua mão. Mas então reparei que ele trazia, a tiracostas, o arco de brincar. Lhe pedi para que deixasse fora o inutensílio. Lá os metais eram interditos. Mas a voz do pangolim me chegou corrigente:
- Deixe o brinquedo entrar. Este não é um caso de última vez...
E Navaia se iluminou de infâncias. Me apertou e, juntos, fomos entrando dentro de nossas próprias sombras. No último esfumar de meu corpo, ainda notei que os outros velhos desciam connosco, rumando pelas profundezas da frangipaneira. E ouvi a voz suavíssima de Ernestina, embalando um longíquo menino. Do lado de lá, à tona da luz, ficavam Marta Gimo e Izidine Naíta. Sua imagem se esvanecia, deles restando a dupla cintura de um cristal, breve cintilação de madrugada.
Aos poucos, vou perdendo a língua dos homens, tomado pelo sotaque do chão. Na luminosa varanda deixo meu último sonho, a árvore do frangipani. Vou ficando do som das pedras. Me deito mais antigo que a terra. Daqui em diante, vou dormir mais quieto que a morte.
A Varanda do Frangipani, Mia Couto
Ed. Cia das Letras
Ano 2007)
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