..De
repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la
foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta
de
uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:
--
Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.
-- É
verdade, concordou Honório envergonhado.
Para
avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã
uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo
recheado. A dívida
não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias
são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores.
Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por
agradar à
mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus,
leques, tanta cousa
mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se.
Começou pelas
contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a
outro, quinhentos
a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se,
um turbilhão
perpétuo, uma voragem.
--
Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e
familiar da
casa.
--
Agora vou, mentiu o Honório.
A
verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes
remissos; por
desgraça
perdera ultimamente um processo, com que fundara grandes esperanças. Não só
recebeu
pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso,
andavam mofinas nos jornais.
D.
Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios.
Não contava
nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades.
Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias,
ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã,
que D.
Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível
prazer, ou jogavam
cartas, ou simplesmente falavam de política. Um
dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos,
e viu-lhe os
olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.
--
Nada, nada.
Compreende-se
que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam
com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para
a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os
princípios são
difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado,
para pagar mal,
e a más horas.
A
dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de
carros. Nunca
demorou
tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha
a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e
Honório
quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a
um
agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembléia é
que viu a carteira
no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.
Durante
os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando,até
o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, -- enfiou depois pela Rua
da Carioca,
mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco
no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café.
Pediu
alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira;
podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e
esta era
a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia
utilizar-se do dinheiro
que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão
irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a
dívida?
Eis
o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a
carteira à polícia,
ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião,
e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe
que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação
que lhe
deu ânimo.
Tudo
isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo,
quase às
escondidas;
abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas
notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns
setecentos mil réis ou
mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes.
Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois
de paga
a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a
perder, tornou
a guardá-la.
Mas
daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro.
Contar para quê?
era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório
teve um
calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa
sorte, um
anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de
crer neles?
E
voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o
contrário, não usar
do
acha- do, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira
algum sinal.
"Se
houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar- me do
dinheiro," pensou
ele. Esquadrinhou
os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não
leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a
carteira?...
Examinou-a
por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dous
cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.
A descoberta
entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e,naquele
caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo
levantado
esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que
estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa.
Parece que
a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu.
"Paciência,
disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer."Chegando
a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia
também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.
--
Nada.
--
Nada?
--
Por quê?
--
Mete a mão no bolso; não te falta nada?
--
Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém
a
achou?
-- Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.
Gustavo
pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi
para
Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era
um
triste
prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara,
deu-lhe as
explicações precisas.
--
Mas conheceste-a?
--
Não; achei os teus bilhetes de visita.
Honório
deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente
a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não
quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o
em trinta mil pedaços: era um
bilhetinho de amor.
Algumas obras do escritor Machado de Assis, também podem ser encontradas no estilo HQ. Abaixo, a primeira página do conto A Carteira, desenhado pelo quadrinhista Spacca.
Regina,
ResponderExcluirQue coincidência: entrei no 'domínio público' essa semana e pensei: vou ler um conto de Machado de Assis e exatamente este belo conto encontrei e fiz leitura.
Estamos sintonizadas nas leituras.
:)
Abraços.
Uau, coicidência mesmo, Ligia! :) :); Vou muito ao Dominio Publico e lá peguei textos de M.A com a grafia original que postei aqui de tão interessante que achei. Faltava conto curto.
ResponderExcluirBeijo
Regina