Todos os dias, como um reloginho, Toni acordava-se às seis. Não que exatamente quisesse, mas dava seis horas - “pimba!”- ele acordava. A parte mais chata era que Sérgio só acordava depois das nove e todo esse tempo sozinho, em silêncio, era extremamente maçante. A impaciência sempre o dominava e por várias vezes tentava acordar “acidentalmente” Sérgio, mas este permanecia inabalável. O jeito era esperar. Com o passar dos anos, acostumou-se com a presença do outro, e perdeu aquele velho traquejo da independência. Naquele dia, em especial, Sérgio parecia antever a sua ansiedade e demorava-se mais a levantar. Toni mal se continha, até que às dez, Sérgio, enfim, apareceu.
Se havia uma coisa que Sérgio prezava era por seu sono. Seus hábitos caseiros e temperamento retraído permitiam que dormisse bastante. Como trabalhava em casa, ordenava seu tempo de modo a produzir o bastante no menor tempo possível, a fim de retornar ao seu sono reparador. Todo ato que necessitasse de um movimento para fora de sua cama era-lhe odioso. E se não fosse por Toni, talvez não fizesse metade do que fazia. Toni havia forçado-o a manter uma rotina, que incluía algumas incursões para fora da casa. Naquela manhã, deu-se ao luxo de estender seu sono, ignorando a espera do outro. Não foi uma das suas melhores noites.
- Bom dia. – resmungou.
Podia ouvir perfeitamente os sons do tráfego na rua, mas não ouviu nada além disso.
- Sou cego, mas não sou idiota. Eu sei que você estava me esperando. Vamos tomar café e terminar logo com isso.
Sérgio sabia que precisava de Toni para muitas coisas, e essa dependência irritava-o. Tinha sido um dos motivos pelos quais nunca pensara em casar. Achava que nunca precisaria de ninguém e que morreria antes de precisar. Nunca pensou que ficaria cego antes dos 30. Nunca pensou em muitas coisas, com as quais passou a se preocupar. Como a quantidade de passos que dava para alcançar certos lugares, por exemplo. Agora já era instintivo, mas a cada novo ambiente havia sempre a possibilidade de um pequeno acidente. Toni já o havia livrado de alguns deles e, em vez de ser grato, era mais ríspido com ele.
Toni sempre pareceu ignorar isso. Desde a cegueira de Sérgio, sua vida girava em função do outro. Sem ele, Sérgio provavelmente se enfurnaria dentro do quarto, se possível, até morrer. Parecia destinado a cuidar dele, como uma sina. Sérgio passara a ser sua responsabilidade, quase um dever. No começo foi difícil, mas se acostumara aos modos rudes, ao praguejar, às lamúrias, às parcas expressões de gratidão... Sérgio era quase uma profissão.
Nesse dia, o mau humor de Sérgio era justificado. Dois dias antes haviam encontrado o editor. Marconi, ou “Marco”, como ele insistia em ser chamado. Sérgio achava-o um paspalhão espaçoso, que não sabia comportar-se conforme sua idade. A reunião fora como sempre, ele havia elogiado seu trabalho. Mas Sérgio não teria esboçado aquele sorriso se soubesse o que viria depois. “Sergião, tá beleza as novas apostilas de alfabetização em braile. Mas a Prefeitura quer dar uns pitacos. Vão mandar uma professora falar com você. É gente boa, a moça. Você vai gostar dela. É cega também”.
O encontro com a professora seria aquela tarde e Sérgio suava às bicas, não sabia se de ódio ou de nervoso. E por mais que Toni insistisse em ficar em casa, Sérgio praticamente o “rebocou” àquele compromisso. Era demais aquela invasão na sua privacidade e de jeito algum iria enfrentar aquilo sozinho. Toni era muito mais agradável no trato com as pessoas, e certamente contornaria as coisas antes que despejasse toda a sua insatisfação na pobre moça.
Adele, a professora, o aguardava no Café Martina, a 4 quadras dali. O ar da tarde era fresco e ela escolheu uma mesa na calçada, de frente pra praia. Não podia ver o mar, mas podia sentir seu cheiro de sargaço, de pele suada, de bronzeador solar. Enquanto sorvia aquele aroma, ouviu o som de cadeira mexendo:
- Senhora Adele?
- Só Adele, por favor. Sérgio?
-... e Toni. Algum problema se ele reunir-se conosco?
- De forma alguma – sorriu.
A conversa fluiu muito melhor do que Sérgio esperava e Toni não iria precisar salvar a noite. Adele adorava o trabalho dele e insistira em conhecer o autor da obra. Seus alunos nunca receberam um material tão coerente com suas necessidades e ela nunca ficara tão satisfeita em ensinar. Adele explicava como funcionava o programa para deficientes visuais da prefeitura, mas Sérgio apenas concordava, sem ouvir uma única palavra. Focou naquela voz alta, acelerada e cheia de exclamações com espantosa fascinação.
Completamente diferente do seu jeito metódico, Adele era espontânea e impulsiva, muito mais parecida com Toni. Por falar em Toni... ele também estava muito mais quieto do que de costume. Provavelmente também teria reparado a personalidade atrativa de Adele. Com a vantagem que podia ver suas formas, sua boca... Sérgio não se importava com o físico dela, mas a imagem de sua boca surgia de diferentes modos à sua mente. Sua mão comichava de vontade de tocá-la e acabar com sua curiosidade.
Ao fim de uma tarde tão agradável, Sérgio, a pretexto de adquirir mais conhecimento sobre “o lado prático de seu trabalho”, combinou um novo encontro com a amável professora. E dessa vez, por mais que insistisse para que Toni permanecesse em casa, por mais que tentasse dissuadi-lo a não ir, este parecia entusiasmado e quase tão ansioso quanto ele. Calou-se também, ao lembrar-se da escada que dava acesso à Prefeitura. Iria encontrar Adele lá e não queria passar vergonha tropeçando com suas pernas bambas nos degraus.
Ocorreu que, ao pé da escada, ao avistar Adele aguardando na entrada, Toni adiantou-se e subiu afoitamente ao encontro dela. Sérgio, não esperando aquele ato impulsivo, segurou firmemente com os dois braços a amurada, como uma criança aprendendo a patinar. Endireitou-se rápido e cuidadosamente continuou, sozinho, escada acima, humilhado pelos sons das saudações que outro efusivamente fazia para a moça.
Toni percebeu a consternação de Sérgio quando este se aproximou, e baixou a cabeça. Adele, fingindo ou não ignorar, contornou a situação, conduzindo-os ao estacionamento. Lá ela estava organizando uma exposição de arte para deficientes visuais. Tudo podia ser tocado, sentido ou escutado. Adele apresentou seus alunos ao autor das apostilas e todos ficaram agitados com a visita dele. Toni adorava crianças, fez muito sucesso entre elas. Aproveitando sua distração, Sérgio aproveitou pra estar a sós com Adele.
Pararam em frente a uma escultura e ela insistiu para que ele tocasse a obra. Diante de sua hesitação, Adele arrebatou as mãos de Sérgio a as depositou delicadamente sobre a escultura, mantendo as suas sobre as dele. Deslizou suavemente, fazendo com que Sérgio percebesse as curvas de um rosto ao encontro de outro rosto, unidos através dos lábios. “Chama-se O BEIJO”, ela sussurrou.
Nesse momento, várias crianças aproximam-se, fazendo zoada, trazidas por Toni, que vinha com a língua quase de fora de tão cansado. Colocou-se entre Sérgio e Adele, que ria alto de suas palhaçadas. Sérgio se manteve silenciosamente contrariado. Toni sempre roubava a cena e nada havia o que se fazer. Agora Adele era-lhe só sorrisos, e ouvia, deliciada, os relatos animados das crianças sobre seu novo amigo. Toni realmente era um sucesso.
Enquanto a afinidade entre a professora e o escritor crescia, a convivência dentro de casa se tornava insuportável, fazendo Toni sentir saudades da usual rispidez com que era tratado. Ela se transformara numa indiferença quase mórbida. Sérgio raramente lhe dirigia a palavra e deixou o velho hábito de fazerem as refeições juntos. Encontrava-se furtivamente com Adele, inventando desculpas pela ausência de Toni. Antes descuidado e taciturno, agora Sérgio arrumava-se com esmero, e, quando sozinho, chegava a assobiar sucessos do rádio. Aprendera a andar para novos lugares desacompanhado e nunca o telefone fora tão usado. Até Marco era melhor tratado.
Foi difícil para Toni processar tudo isso. Quanto mais que insistia em agir como se nada tivesse acontecido, mais Sérgio o destratava. Até que ele entendeu que as coisas não voltariam a ser como antes. Sua aparência mudou, tornando-se fraca e doentia. Perdeu o gosto pela rua. Dormia demais. Encolhia-se na presença do outro. Perder a companhia de Adele não era nada comparado a perder a de Sérgio.
Uma noite, enquanto Sérgio se arrumava, ouviu o outro aproximando-se da porta. Sentia que Toni observava-o e isso o perturbou. “Jante logo. Está esfriando”, foi tudo o que disse antes de sair, apressado, deixando a porta entreaberta. Toni caminhou até ela para vê-lo partir, mas, ao olhar pra fora, distraiu-se com os sons que vinham da rua. Ficou ali a acompanhar as pessoas que passavam, os carros velozes, as cores e luzes. Tudo tão vivo, tão distante dele agora... Foi fechando os olhos lentamente, lentamente... até que, de súbito, os abriu. Ergueu-se olhando firme como já não fazia há muito tempo. Avançou dois passos pra fora... mais dois passos... e, num piscar de olhos se foi, sumindo na escuridão.
Três dias depois, Adele aguarda, aflita, a chegada de Sérgio. Ao ouvir seus passos se aproximando, dirigiu-se ao encontro dele e procurou sua mão.
- E então?
- Nada. Fugiu mesmo. Diabo de cachorro!
Roberta usou de muita sensibilidade ao escrever o conto.
ResponderExcluirNão tive como não me lembrar do "Timbuktu", de Paul Auster, outro cão de nobres sentimentos e que tb dá um rumo inesperado à sua vida "num piscar de olhos".
Parabéns Robs!!