Pular para o conteúdo principal

Quem Dá e Volta a Tomar...., Regina Porto

     Vira as costas para o mar.   
     Além de perder a bela visão, não sei qual o castigo que pode sofrer alguém que, por ventura, dê as costas para o mar.  Minha mãe, de quem ouvi o provérbio português, também não sabia... 
    Bem, morando em cidade litorânea tenho mais chances de estar de frente, como agora que tenho a Oceano Atlântico numa visão de 180°, mas ocasionalmente vou ficar de costas para o mar, mesmo que não tivesse pedido de volta algo que dei há 37 anos.   
     Regina, que coisa feia!! Deu e  tomou? Sim, dei um livro lá longe em anos passados e pedi de volta. Não queria sabê-lo abandonado sem leitura transformado em pó pelas traças. 
     Com o exemplar nas mãos, me vi muito muito jovem, estudante na Unicap* .  Lembro muito bem: professora Irandé, cobrava lição, explicava gramática a partir daquelas crônicas. Era exigente, mas amável e usava uns colares de contas grandes e coloridas. Um dia contou que teve sua casa  assaltada e um colega mais gaiato, perguntou se os ladrões tinham deixado os colares.  Professor Leonildo: brincalhão, jovem, permanentemente encantado por todas as mulheres. Ambos, com a mesma didática, usavam o livro Elenco de Cronistas Modernos.  (Ed. José Olympio 1974)
     Apesar do mau estado de conservação, o reencontro  com o exemplar me deu alegria:  revi boas crônicas e dei de cara comigo mesma estudante de vinte e poucos anos. Achei engraçado descobrir que eu desconhecia o significado de dezoito  palavras de um só texto.       
     Eu não sabia o que era eloqüente! Sim, naquela época  com o charmoso trema.                Quanta ignorância!  Paulo Mendes Campos me apresentou a muitas palavras novas: barafunda e lisura, dentre elas.



Ahhhhhhh, mas também fiquei orgulhosíssima de saber que minhas conhecidas monocotiledôneas, dicotiledôneas e fanerógamos estavam lá em Fábula Eleitoral Para Crianças, que este blog vai trazer quarta-feira dia 25.  Eu era estudante de biologia, essas palavras tinham belos sons. Botânica!!! 





   "... De olhos  muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata e..."  É assim que Clarice Lispector se refere a Lisette, uma macaquinha... do livro A Legião Estrangeira. E eu sabia o que era prognata?   Nessa crônica que li na juventude vi apenas a história de 2 macacos, sendo que a Lisette foi comprada na rua.  Ontem, quando reli, tive um olhar bem diferente e voltado para a autora. Notei bom humor e ternura em Clarice. 






Gostei de ver tudo o que aprendi com Elenco de Cronistas Modernos. No livro estão também minha dedicatória, com uma letra que há muito já não tenho; a letra da música: Sonho Impossível, que eu não sei porque está na última folha, escrita a lápis. Diversas anotações sobre quais os textos para quais provas e a marca da assinatura do primeiro dono. Eu comprei de um sebo naquele ano instalado no andar térreo do Bloco A da Unicap. 





Dei o livro a uma sobrinha tão logo terminei os dois períodos escolares em que precisei dele. Esperava que em algum momento ela lesse e gostasse de algum autor ou texto. 
Nunca leu. Não lembrava o quanto de mim estivesse com ele, mas imaginando que devido ao abandono se ela ainda possuísse o livro, este  poderia estar alimentando traças, não temi virar as costas para o mar. Pedi de volta. Fiz bem. Ah, neste momento continuo com o mar à minha frente.



* Unicap - Universidade Católica de Pernambuco.
Elenco de Cronistas Modernos está fora de catálogo.

Monocotiledônea - angiosperma que tem um só cotilédone. Ex. cana de açúcar,milho

Dicotiledônea- angiospermas que tem dois cotilédones. Ex. feijão, amendoim.

Fanerógama- um dos dois grupos nos quais Lineu dividiu o reino vegetal, constituído pelas angiospermas e gimnospermas [Como grupo sistemático, é ultrapassado; no entanto, permanece o uso do termo para designar qualquer vegetal que se reproduz através de sementes, em vez de esporos ou gametas.]
Prognata- o que tem o queixo projetado pra frente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.