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De Ricardo Ramos Filho Sobre a Avó D. Heloisa Ramos

Difícil encontrar o tom certo para escrever sobre Heloísa Ramos. Quando o amigo Angelo Caio Mendes Corrêa pediu-me para falar a respeito, quase recusei. Sabia que iria me aproximar o tempo todo de coisas que ela detestava: pieguices, lugares comuns e frases feitas. Paciência. Como não acredito em almas de outro mundo resolvi arriscar.

A percepção do sinal que ela trazia no olho direito, referenciado por Graciliano em suas cartas de amor, remonta à minha infância. Sempre me intrigou e percebo, com certa surpresa, que nunca fiz referência a ele em nossos contatos. Talvez identificasse nesta marca a possibilidade de um olhar especial e, conhecendo-a, achasse natural. Inteligente, autêntica, minha avó enxergava diferentemente dos outros.

Heloísa de Medeiros Ramos nasceu em Maceió no dia 11 de janeiro de 1910, e faleceu em 23 de julho de 1999. Aos dezoito anos casou-se com o viúvo Graciliano Ramos, herdando do relacionamento anterior os enteados: Márcio, Júnio, Múcio e Maria Augusta. De sua união com o escritor nasceram mais quatro filhos: Ricardo, Roberto, Luiza e Clara. Enviuvou muito cedo, aos 43 anos de idade, no dia 20 de março de 1953. E nunca mais se casou. Iria dedicar o resto de sua vida à administração da obra de Graciliano Ramos.

Heloísa cumpria uma rotina diária abnegada. Levantava-se relativamente tarde, já que detestava acordar cedo, e logo estava em seu gabinete trabalhando. Lia todos os jornais importantes do dia, além de algumas revistas. As referências ao ex-marido eram recortadas e arquivadas. Graças a este expediente, pode doar mais tarde ao IEB, Instituto de Estudos Brasileiros, localizado na USP, um acervo importante e completo sobre Graciliano Ramos.

Qualquer pesquisador que deseje estudar a obra dele encontrará à sua disposição documentos, artigos, fotos, vasto material capaz de enriquecer as mais variadas teses. Heloísa, porém, fazia mais do que isso. Revisava novas edições, negociava contratos, comunicava-se com editores e interessados em publicar Graciliano. Facilitava-lhe a tarefa sua excelente capacidade em relacionar-se. Falante ao extremo, alegre e desenvolta, sempre foi pessoa de fácil acesso. E assim passou seus dias, anos, a vida inteira. Levando muito a sério o ofício de conduzir o legado literário de meu avô, tornou-se figura indispensável quando se pensa no percurso cumprido pelos livros do velho Graça até os dias de hoje. As edições bem cuidadas e presentes nas livrarias, são ainda hoje reflexo do trabalho por ela iniciado, e continuado pela filha Luiza Ramos Amado.

Não resisto aqui à tentação. Afirmo que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Faço-o divertindo-me saudoso, e consciente de todo o incômodo que provocaria em minha avó ao dizer tal asneira. Pelo preconceito que há no conceito popular, pela ojeriza que ela tinha em ouvir lugares comuns. Até hoje, quando falo com meus irmãos e primos, costumamos lembrar vovó quando usamos frases feitas. Sempre rindo da reação imediata de desagrado dela ao ouvi-las e pedindo licença à sua memória. Mas Heloísa Ramos, independentemente de qualquer colocação em tom de galhofa que se faça, foi mesmo uma pessoa muito especial.

Corajosa, sem papas na língua, ciosa de suas responsabilidades. Em 1980, por exemplo, escreveu nota para a primeira edição de Cartas, de Graciliano Ramos, justificando esse lançamento: “Convenço-me da necessidade de publicar a correspondência íntima de Graciliano Ramos, falecido há 27 anos. Durante tão longo tempo esses papéis permaneceram comigo, parte da minha saudade. Graciliano preservava a sua identidade ao ponto de não permitir intrusões em seu espaço pessoal, era avesso a qualquer publicidade, muito contido em suas relações com terceiros e dizia que só após vinte anos de sua morte se deveria publicar seus inéditos (…)”. Ela esperou um pouco mais.

Registrei as impressões que tenho dela em um livro, Sobre o telhado das árvores, memórias infantis publicadas pela Ed. Globo em 2008.   Vó Lozinha, como preferíamos chamá-la, gostava de repetir uma história. Falava sempre de uma pergunta que lhe fiz quando era menino:

“- Vó, por que os passarinhos não caem do telhado das árvores?”

Ria da pergunta que considerava poética. Hoje, quase sessentão, sei que muito do que sou foi conseqüência do meu relacionamento na infância com ela.

Aos sete anos de idade pedi que me contasse uma história. Apresentou-me Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Mais tarde terminei sozinho e foi o primeiro livro que li. A imagem que fiz de Dona Benta, por sinal, foi guiada pelos sentimentos em relação à minha avó. O mesmo tipo de delicadeza, atenção aos netos, disposição para gastar tempo com eles. Devo muito ao carinho que me transmitiu.

Aos domingos, por volta de seis da tarde, ligava-me de Maceió. Entusiasmava-se. Política, fofocas familiares, reminiscências do tempo em que era mocinha, emendava um assunto no outro sem tomar fôlego. Às vezes, sentindo-lhe a respiração difícil tentava, preocupado, interrompê-la. Quem disse que ela queria respirar? Despedia-se sempre carinhosa, declarando seu amor, abrandando a voz num quase murmúrio que afagava minha cabeça. Minhas tardes de domingo eram muito especiais. Hoje, certamente, ela seria uma jovem senhora de cem anos.


Fonte: SPNews


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