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Mostrando postagens de julho, 2024

A Partida, conto de Osman Lins

     H oje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante.   Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir. Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa. Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me

O Que Nossos Atletas Leem?

 O Estadão buscou saber se e o que nossos atletas das olimpíadas de Paris estão lendo, leram ou indicam para leitura.  Trouxe para o blog, um resumo da matéria feita por Júlia Queiroz e Sabrina Legramandi, jornalista do Estadão. Atleta: Hugo Calderano Modalidade:Tênis de mesa Livro: Cabeça de Campeão , François Ducasse "O François Ducasse trabalhou comigo na minha preparação mental antes dos  Jogos Olímpicos do Rio . Ele faleceu poucas semanas antes da minha estreia na Rio 2016, mas o seu livro me trouxe insights importantes que me ajudam até hoje". Atleta: Gabi Guimarães Modalidade: Vôlei Livro: O Obstáculo é o Caminho ,Ryan Holiday “Um dos melhores livro que já li. Aborda como podemos enfrentar as dificuldades que aparecem em nosso caminho e nos fortalecermos com elas. Como transformar os obstáculos em oportunidades pelo meio do estoicismo. Gosto muito de ler sobre o estoicismo e o Ryan é um autor que sempre usa os fundamentos do estoicismo em seus livros.” Atleta:Bia Ferre

Sozinho no Bar, crônica de Aluizio Falcão

     Nove da noite no bar Bohemia. Movimentadíssimo na madrugada este bar, em horas cristãs, tinha  um silêncio de mosteiro. Na mesa  ao lado, um jovem casal is tocando sua conversinha em voz baixa, mas eu podia ouvir claramente. Ele dizia que era da Mooca e nem precisava dizer, o sotaque revelava. A moça era do interior, informação também desnecessária, dado o erre esticado em certas sílabas, tão presente na fala caipira de São Paulo. Eu acompanhava a conversa discretamente, sem olhar, como quem ouve um programa de rádio. O rapaz se esforçava para impressionar, dizia que gostava de ler, desfiava títulos best-sellers. A namorada, modesta, nem se lembrava do último livro que lera, comentava a novela das oito. Depois, graças a Deus, abandonaram os temas estéticos. Enveredaram pelos floridos caminhos da intimidade. Ela disse "eu te gosto"com voz trêmula, e senti uma vaga inveja por serem tão jovens e tão felizes. Onde estarão hoje, passados tantos anos? Fico a imaginar quntas pe

De Ricardo Ramos Filho Sobre a Avó D. Heloisa Ramos

Difícil  encontrar o tom certo para escrever sobre Heloísa Ramos. Quando o amigo Angelo Caio Mendes Corrêa pediu-me para falar a respeito, quase recusei. Sabia que iria me aproximar o tempo todo de coisas que ela detestava: pieguices, lugares comuns e frases feitas. Paciência. Como não acredito em almas de outro mundo resolvi arriscar. A percepção do sinal que ela trazia no olho direito, referenciado por Graciliano em suas cartas de amor, remonta à minha infância. Sempre me intrigou e percebo, com certa surpresa, que nunca fiz referência a ele em nossos contatos. Talvez identificasse nesta marca a possibilidade de um olhar especial e, conhecendo-a, achasse natural. Inteligente, autêntica, minha avó enxergava diferentemente dos outros. Heloísa de Medeiros Ramos nasceu em Maceió no dia 11 de janeiro de 1910, e faleceu em 23 de julho de 1999. Aos dezoito anos casou-se com o viúvo Graciliano Ramos, herdando do relacionamento anterior os enteados: Márcio, Júnio, Múcio e Maria Augusta. De su

Um Molho de Chaves, poema de Ladyce West

A primeira: do diário Depois, a do cadeado da bicicleta, do armário da piscina e prateleira do colégio. Da escrivaninha no quarto, a de casa, do carro do primeiro apartamento, da caixa dos Correios do portão do edifício. Só falta uma... Você me dá? Abre o seu peito e me entrega ou o coração já tem dono? Em: À Meia Voz, Ladyce West. 2020 pág.70 Primeiro texto da série: página 70.

O Pássaro Azul, poema de Charles Bukowski

há um pássaro azul em meu peito que quer sair mas sou duro demais com ele,eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja. há um pássaro azul em meu peito que quer sair mas eu despejo uísque sobre ele e inalo fumaça de cigarro e as putas e os atendentes dos bares e das mercearias nunca saberão que ele está lá dentro. há um pássaro azul em meu peito que quer sair mas sou duro demais com ele, eu digo, fique aí, quer acabar comigo? quer foder com minha escrita? quer arruinar a venda dos meus livros na Europa? há um pássaro azul em meu peito que quer sair mas sou bastante esperto, deixo que ele saia somente em algumas noites quando todos estão dormindo. eu digo, sei que você está aí, então não fique triste. depois o coloco de volta em seu lugar, mas ele ainda canta um pouquinho lá dentro, não deixo que morra completamente e nós dormimos juntos assim com nosso pacto secreto e isto é bom o suficiente para fazer um homem chorar, mas eu não choro, e você? – Charles Bukowski, em “Textos auto

A Mulher e o Reino, de Ariano Suassuna para D.Zélia Suassuna

Oh! Romã do pomar, relva, esmeralda, olhos de Ouro e azul, minha Alazã! Ária em cordas de Sol, fruto de prata, meu chão e meu anel , Céu da manhã! Ó meu sono, meu sangue, dom e coragem, água das pedras, rosa e belveder! Meu candeeiro aceso da Miragem meu mito e meu poder, minha Mulher! Diz-se que tudo passa e o Tempo duro tudo esfarela: o Sangue há de morrer! Mas quando a luz me diz que esse Ouro puro se acaba por finar e corromper, meu sangue ferve contra a vã Razão E pulsa seu Amor na escuridão!

A Casa dos Homens, crônica de Rubem Braga

     A casa dos homens está nessa idade em que certas casas começam a ficar mal-assombradas: em algum canto adensa, ainda, porém, em demasia fluido, o ectoplasma de um primeiro fantasma, que é também um homem grosso e triste.      Talvez seja no porão; é impossível vê-lo; apenas em certo ponto há uma impressão de que o ar está um pouco mais pesado em nossa face. Os homens da casa não se importam com isso: eles se observam; levantam-se em seus quartos, juntam-se na grande sala, olham o velho relógio da parede e secretamente se censuram, pela presença mútua.      Há muito, por uma combinação tácita, nenhum deles traz mulher para casa no meio da noite. Antigamente, é verdade, vinham mulheres, às vezes duas ou três, e na sala bebiam vinho e riam: há lembrança de uma noite em que todos cantaram. Mas o tempo foi passando; a amizade dos homens cimentou-se em uma espécie de tédio amargo; querem evitar questões; mulheres criam questões.      Hojeseria ridículo pensar em trazer mulheres; a casa

A Casa das Mulheres, crônica de Rubem Braga

     A casa das seis mulheres amanhece tarde e lenta;  chegam duas tão lavadas, penteadas, com pe rfumes, com louçãs, e se olham passeando no capim perto da piscina azul, e lhes dá vontade de fotografias. Chegam mais duas de shorts coloridos; depois uma some como por encanto, mas surge outra. Na casa das seis mulheres nunca são vistas seis mulheres; duas se afastam para se dizer segredos, ou uma está lá dentro falando ao telefone, e quando vem contando uma história outra sai correndo para mudar a blusa.      A vida é uma tarde de domingo, cchove com energia, faz sol com prazer, há flores, vidros, luz e sombra na casa das seis mulheres. Os homens que chegam se sentem bem;  mas os homens são transitivos; chegam com suas vozes grossas, bebem tilintando gelo nos copos, fumam e partem; os homens são como sombras lentas e fortes, mas apenas sombras. Podem deixar algo no coração e nos segredos de alguma das seis mulheres mas depois mergulham no cinzento de seus cotidianos e a casa des seis mu

Minha Leitura Atual: O Velho Que Lia Romances de Amor, Luís Sepúlveda

     O céu era uma inflada pança de burro que pendia  ameaçadora a poucos palmos das cabeças. O vento morno e pegajoso varria algumas folhas soltas e sacudia com violência as bananairas raquíticas que enfeitavam a fachada da delegacia.      Os poucos habitantes de El Idilio mais um bando de aventureiros vindos das redondezas se reuniam no cais, esperando a vez de sentar na poltrona portátil do doutor Rubicundo Loachamín, o dentista, que aliviava as dores de seus pacientes mediante um curioso tipo de anestesia oral.      - Dói? - perguntava      Os pacientes, agarrando-se no encosto da poltrona, respondiam abrindo desmesuradamente os olhos e suando em bicas.      Alguns queriam retirar de suas bocas as mãos insolentes do dentista e responder-lhe com o merecido palavrão, mas suas intenções se chocavam com os braços fortes e com a voz autoritária do odontólogo.      - Quieto, porra! Tire as mãos daí. Já sei que dói. E de quem é a culpa? Vamos cer. É minha? Do governo. Meta bem isso na c

A Formosa Vassalissa, conto russo

  Há muito tempo atrás, num reino distante, vivia um rico mercador com a mulher e a sua única filha que se chamava Vassalissa. A menina era linda como um sonho. E também era gentil e educada. Ao completar oito anos, sua mãe adoeceu e presenteou a menina com uma bonequinha mágica.   - Filha, cuide muito bem dela e ela sempre a protegerá. Nunca, jamais, fale dela a ninguém. E tem outra coisa: sempre que você se sentir em perigo ou precisar de alguma ajuda, dê para ela comida e bebida que a boneca vai ajudar. Passado algum tempo, a mãe de Vassalissa faleceu. O seu pai, preocupado por não ter com quem deixar a menina, sempre que viajava, casou-se com uma viúva que tinha duas filhas. A madrasta e suas filhas odiaram a menina. Tinham inveja de sua beleza e meiguice e, toda vez que o pai viajava, a madrasta inventava mil trabalhos. Não importava quanto, nem qual fosse o serviço. No tempo certo, tudo estava concluído. Como isso era possível? Simples! Vassalissa pegava sua bonequinha mágica e a