Jesus
salvou todos. Para acessar a assembleia dos eleitos, a fé é o ticket. Solo
fide, apenas a fé,
proclamaram muitos reformadores religiosos do século 16.
Lutero buscou a base em Hebreus 10,38: o justo viverá pela fé (também
na Epístola
aos Romanos e em outros trechos).
Os católicos valorizam
a fé. Porém, a salvação passa pelas obras boas que evidenciem sua crença. A
epístola do apóstolo Tiago enfatiza no capítulo segundo: a fé sem obras é
morta. Lutero desconfiava desse trecho (epístola de palha, ele dizia). Chegou a
querer afastar a carta do cânone do Novo Testamento. Tiago está próximo de uma
concepção religiosa judaica: a prática correta da vida e de ações éticas. O
princípio se chama ortopraxia. A Bíblia apresenta muitas concepções ao longo
dos séculos em que foi redigida, com disputas entre grupos e diversas
elaborações teológicas. Para um historiador, isso é a riqueza do texto.
Encerro a teologia
aqui. Quero ir para outra direção. Uso o binômio fé e obras para falar de
pessoas que se dividem no campo do amor entre quem proclama e quem faz.
Explico-me. Fui criado em tradição católica por muitos anos. Além do substrato
romano, ainda tenho a presença de um “espírito de imigrante” na minha família e
na região da minha infância e juventude. O que seria? Muitas coisas, mas,
principalmente, ênfase na ação. Gente pobre que saiu de um país para construir
vida em outro, quase sempre, foca em questões muito concretas e diretas. A vida
em meio aos desafios do imigrante é casa, comida, proteção contra violência,
poupança, etc. O mundo apresenta desafios: frio, fome, dor e cabe ao ser humano
enfrentá-los com defesas práticas. É a etapa inicial de todo Robinson
Crusoé: não existe metafísica, apenas física prática. Com o
tempo, o náufrago faz reflexões filosóficas e antropológicas, todavia só
depois, bem depois...
Creio no amor. Acredito
profundamente no sentido amplo do termo. Se me perguntam como evidencio o amor
que tenho ou que recebo, sempre será por... obras. Seria coisa de descendente
de católicos que emigraram? Teologia e pobreza reforçando atos reais? Acho que
sim. Assim, acho linda a frase “eu te amo”. Tendo a buscar as boas obras, sem
necessidade de declarações românticas.
Você me ama? Avalio o
tempo que passa comigo, a atenção que me dispensou, o cuidado (não o valor) do
presente dado e a sensibilidade com o que necessito. Isso é amor. “Meu bem, eu
daria minha vida por você.” Admiro a frase! Já ouvi, inclusive. Acredito em
coisas mais prosaicas do que a hipótese de, um dia, se sacrificar por minha
pessoa. Acredito na louça lavada, na noite passada em claro com alguma doença,
no abraço no momento de dor, no velório compartilhado, na sopa trazida ao
quarto e no chá no inverno
.
Em quantos Natais vi
choros de emoção dizendo que “família era tudo”. Pensava, com um toque de
ironia: “Na hora de passar a noite no hospital com a matriarca, não parece ter
sido tudo”. Volto a minha matriz: quero ver obras, não discursos, ações, não
retórica. Claro, obras e a frase eu te amo são fundamentais. Se tiver de
dispensar alguma, largue mão da frase e realize algo. “Eu te amo” sem cuidados
é um “flatus vocis”, para fazer uma tradução simpática em jornal familiar, um
som vazio. Sempre me soa como o homem que explora o trabalho feminino em casa o
ano todo e, no dia da mulher, dá flores com um cartão. O gesto oscila entre o
vazio e a hipocrisia.
Todos sabemos que tanto
católicos quanto evangélicos condenam a hipocrisia e a falta de caridade. Usei
a metáfora para falar do caso da relação entre as pessoas, não das pessoas com
suas crenças. Há muitas maneiras de ortopraxia e é possível ser hipócrita
fazendo boas obras também. Eu desejei explicar o vazio de declarações de amor
sem atos concretos. No meu universo, creio que não o mudarei, o ideal é a
reunião da fala com a ação. Como disse, se precisamos dispensar um, dispense o
que não altera o mundo: a frase. Mantenha o ato e seu poder
transformador.
A coisa mais comovente
é ouvir “eu te amo” da boca da pessoa que coroa atos com a confirmação
discursiva. Nesse caso, ouço, emocionado. O verbo amar traz à memória o tempo,
a dedicação e tudo mais. A boca emitiu sons e eu trago a lembrança de que
aquilo virou ação. É o momento lindo de fusão de significante e de significado,
a plena realização romântica de duas vidas significativas que se encontraram no
ato e na retórica.
Gosta de lindos
discursos? Lembro-me do equívoco do rei Lear, que favoreceu as filhas que
falavam bem e deserdou a única que o amava, mas era incapaz de dizê-lo de forma
bonita. Aprenda a valorizar Cordélia e sua entrega sincera.
Com os recursos da tecnologia atual, eu posso fazer meu celular dizer e repetir a frase “eu te amo” o dia inteiro. Você se apaixonaria pelo aparelho? A vaidade de Lear o condenou a um fim trágico. A vaidade sempre se alegra com os elogios e as frases retumbantes. O amor é modesto e olha para as mãos que realizam. Quando essa frase for dita dentro da sua orelha, sussurrante, por alguém que consumiu muito tempo dedicado a você, parabéns! Você encontrou o amor. É preciso ter esperança e fé no amor... e nas boas obras.
Em: Estadão 21.5.2021
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