Érico Veríssimo, Incidente em Antares
Por alguns segundos o padre permanece em silêncio, de dedos trançados sobre o peito, a cabeça baixa.
— Como é difícil viver... — balbucia.
— O Mauro embarcou de volta para Porto Alegre hoje no ônibus das quatro. Não se despediu do pai. É que esta manhã tiveram em casa uma altercação violentíssima. O Mauro temeu até que o pai o agredisse fisicamente. Não podem mais viver embaixo do mesmo teto.
— Tudo por causa de política, naturalmente...
— Sim, Inocêncio detesta as ideias do filho.
— Ouvi dizer que o rapaz é comunista. E verdade?
— Comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social. Por outro lado, não ignoramos que na Rússia Soviética não existe nenhuma liberdade de crítica ou de expressão e que um escritor pode ser condenado a três ou cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria por ter escrito poemas, artigos ou romances que contrariam ou simplesmente não seguem a linha política do partido único.
- É um mundo triste. Rezo todos os dias pela alma do Inocêncio Pigarço. E se não me levares a mal, eu te lembraria que não é fácil julgar uma criatura humana... Estudando o passado dum homem a gente talvez encontre explicações para o seu comportamento no presente.
"É curioso", pensa Pedro-Paulo. "Que terá acontecido ao padre Gerôncio que ele já não acredita mais tão fanaticamente no livre-arbítrio?"
- Que sabes sobre a infância desse homem?
- Nada.
- Pois bem, vou te contar algo muito importante. Não estou quebrando o sigilo do confessionário porque o Inocência jamais confessou comigo. Fui testemunha ocular e auricular da cena que vou narrar e que peço não contes a ninguém. Por que não te sentas? Eu vou descansar estes ossos.
O pároco de Antares acomoda-se numa cadeira de respaldo alto. Pedro-Paulo senta-se num mocho. O velho continua a falar:
— Eu tinha uns trinta anos quando vim para esta paróquia. Inocêncio devia ser um menino dos seus dez anos... O pai dele era contrabandista... Sabias?
— Vagamente.
— Chamava-se Venâncio, costumava passar meses ausente, dizem que fazia contrabando na nossa fronteira seca com o Uruguai. Era um sujeito simpático, comunicativo, grande presenteador, um belo tipo de gauchão. Pois na última visita que Venâncio fez a Antares um amigo seu lhe contou que o Melquíades Zabaleta, outro contrabandista, sujeito de maus bofes, andava dizendo pela cidade que ia bater de rebenque na cara do Venâncio, onde e quando o encontrasse. Alegava que o pai do Inocêncio o havia logrado na partilha dum contrabando que os dois tinham passado Juntos.
O pároco cala-se, meio ofegante, e por alguns instantes fica a olhar para um rato que está agora parado num ângulo do rodapé da sacristia.
- Foi numa fria manhã de inverno (devia ser julho ou agosto), eu estava à porta desta mesina igreja quando avistei o Venâncio que vinha caminhando pela calçada da praça, trazendo o Inocêncio pela mão. Quando vi que o Zabaleta estava na esquina da praça, conversando com dois amigos, e de costas para o Venâncio, fiquei gelado, imaginando o que podia acontecer e, naturalmente, pensei logo no menino. Tudo se passou dum modo que eu hoje nao saberia descrever com precisão. Duma coisa me lembro claro: antes que o Zabaleta tivesse tempo de se voltar, Venâncio tirou o revolver da cintura e, duns dez metros de distância, meteu-lhe três balaços nas costas. O Zabaleta caiu de borco na sarjeta, sangrando pela boca. O Venâncio saiu numa disparada, deixando o filho sozinho na calçada. Ouviam-se gritos: "Pega o assassino! Pega o assassino!". Atravessei a rua para tomar conta do pobre menino. Jamais poderei esquecer a expressão do rosto do Inocêncio. Era uma mistura de susto... surpresa... talvez revolta, não sei... Olhava com olhos arregalados para aquele corpo caído numa poça de sangue. E tremia, tremia, o coitadinho. Estava em estado de choque, não conseguia chorar nem falar. Ergui-o nos meus braços e levei-o para casa. Chamamos um doutor. Durante dois dias o menino não conseguiu pronunciar uma palavra. Só olhava para a gente com uns olhos grandes, ora tristes, ora apavorados. Parecia não reconhecer ninguém, nem a mãe...
— Conseguiram prender o assassino?
— Não. Nunca. Ele deve ter cruzado o rio na lancha dum companheiro. Dizem que se homiziou na Argentina ou no Paraguai. A verdade é que nunca mais ninguém teve notícias dele.
— Não escrevia à mulher? Não lhe mandava dinheiro?
O padre sacode negativamente a cabeça.
—Não, nunca. A senhora Pigarço é uma pessoa de grande valor. Costurava para fora, trabalhava noite e dia. Sem o auxílio de ninguém custeou os estudos secundários do filho. Primeiro Inocêncio queria ser advogado, creio que chegou a fazer dois anos de direito, quando já estava empregado. Depois resolveu entrar para a polícia técnica. O coronel Tibério ajudou-o, protegeu-o...
- E depois usou-o.
O vigário finge não ter ouvido essa observação. Passa o lenço pelo rosto, longamente.
- Quando foi feito delegado, quis naturalmente servir na cidade onde era conhecido como o "filho do contrabandista bandido". E estou certo de que procurou apaixonadamente ser o contrário do pai, ficando do lado da lei.
— Padre — diz Pedro-Paulo —, o senhor de certo modo acha então que Venâncio e não Inocêncio Pigarço é responsável pela tortura e o assassínio de João Paz e de tantos outros infelizes que caíram nas garras da polícia local?
— Não é bem isso, meu filho, e tu sabes. Mas é importante a gente conhecer esse fato da vida do Inocêncio para melhor julgá-lo.
— Mas não se trata apenas de julgamento. Imagine esta situação. Um sujeito aponta um revólver para meu peito e diz que vai me matar e eu, em vez de me defender, replico: Atira, atira porque eu sei que tens um trauma de infância. Mata-me e continua a matar outros, porque tens boas razões para isso, e todos nós te compreendemos, pobre menino!
Gerôncio sacode a cabeça desalentadamente.
— Não me compreendeste...
— Talvez não. Mas deduzo que o senhor conclui que Inocêncio ficou tão horrorizado com o crime e com os criminosos, por causa do ato do pai, de que foi testemunha, que decidiu provar que ele, o filho do bandido, era um homem de bem, do lado da Lei e do Direito. Mas veja bem, padre. No fim ele se tornou também um criminoso no seu zelo de defender a Ordem e a Justiça. Nos seus famigerados interrogatórios, na ânsia de obrigar os supostos criminosos a falar, ele usa de técnicas desumanas, criminosas. Tudo é uma questão de semântica. A tortura deixou de ser um crime para ser uma técnica que se aprende e se aplica impessoalmente.
- Tu achas que é isso que se passa como nosso delegado?
- É apenas uma hipótese. Inocência Pigarço é; antes de tudo, um policial de carreira, um profissional. Como guardião da sociedade, deve achar que os fins justificam os meios, portanto, são bons se o fim é defender o "poder constituído". Mas olhe o problema dum outro ângulo. Por alguma razão misteriosa ele pode ter também uma certa necessidade íntima de torturar, uma secreta veia de sadismo que a profissão não só revelou como também estimulou e "justificou”. Venâncio matou porque estava assustado. Inocêncio tortura e eventualmente assassina (mesmo que não dê aos seus torturadores ordens explícitas para matar) porque isso o gratifica. Na minha opinião é mais criminoso que o pai.
— Só Deus sabe, meu filho!
— Padre, enquanto Deus não nos disser claramente o que Ele pensa de tudo isso, nós devíamos em nome de Cristo, que era e é deste mundo, combater tipos como Inocência Pigarço, que matam em nome da Justiça, do Capitalismo, do Comunismo, do Fascismo, da Família, da Pátria e (não ria!) até mesmo de Deus.
Gerôncio baixa a cabeça, encostando o queixo pontudo no magro peito.
— Meu filho — murmura ele —, como é difícil viver! Cada vez mais. Às vezes cometo o pecado de ficar alegre por estarem contados os meus dias na terra.
— Padre, espero não estar pecando quando sinto a alegria de estar vivo. Gosto da vida. É um desafio permanente. Se ela é absurda, sem sentido, então procuremos dar-lhe um sentido. Eu acho que a senha é Amor.
Imagem: Saiba Mais
Tão maravilhoso, Érico!
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