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Belarmino do Depósito, Regina Ruth Rincon Caires


− Pode dar meia-volta, Belarmino, hoje você não trabalha. Vai descansar a carcaça por um bom tempo. Pode até ficar mais bonito, sabia?

Só de ouvir a voz enfadonha do gerente, Belarmino sente um arrepio. É uma aversão que se avoluma a cada encontro. De repente, vem aquela vontade danada de perder a paciência, mas, talvez por intercessão de todos os santos, desvia o corpo e entra na loja. Se o infeliz imaginasse a angústia que o subalterno enfrenta a cada minuto da vida, se ele vestisse a pele do outro por um dia apenas, não seria tão impiedoso. O sorriso mangador, afetado, há muito tempo está entalado na garganta de Belarmino. Uma hora, isso não vai dar certo.

Empurra a porta do escritório:

− Licença, patrão...

− Entra, Belarmino, senta.

− O senhor vai me dispensar?

− Que é isso, homem? Ficou louco? É o seguinte: recebi orientação de que, a partir de hoje, o empregado que tem mais de sessenta anos deve ficar em casa. É exigência trabalhista, essa pandemia traz muito risco. Vamos obedecer, não é, meu velho amigo?

− O senhor que sabe.

− Pode ficar tranquilo, você vai receber o pagamento e a cesta básica na sua casa. Não precisa sair. Nada de correr riscos. Vai acompanhando as notícias, não demora muito e tudo isso passa. Confia em mim?

− Claro que confio, patrão! O senhor é cópia do seu pai, que Deus o tenha... Direito que nem ele.

Segurando a sacola com a marmita ainda morna, e estranhando inverter o percurso àquela hora da manhã, o empregado obedece. Se bem que sente um alívio gigante de saber que poderá ficar em casa, enfurnado. Sem horário, sem compromisso. E, o melhor de tudo, sem exposição.

Bota fé no patrão, ele tem os mesmos olhos mansos do pai. E o velho Deodato lhe traz saudade. Entrou na vida de Belarmino quando este ainda era moço, num tempo em que ele mais a mãe vendiam ovos com a carrocinha de mão. O velho era cliente. E, quando Belarmino ficou só, já madurão, Deodato ofereceu o trabalho na loja. Na loja, não. No depósito, ao lado. Logo o empregado compreendeu a razão de ser colocado lá. Realmente, não era uma figura agradável de ser vista. Isso não foi falado, foi entendido. Sabia que era extremamente feio. Não só feio, era estranho. Desengonçado, excessivamente alto e magro. As pernas compridas se encontravam apenas nos joelhos voltados para dentro, o que lhe conferia um andar arrastado. Não lento, apenas arrastado. E os olhos eram apavorantes, horrendos. Grandes, desmedidos e saltados das órbitas. Mas Belarmino não era mau, nunca foi. Apenas ressabiado, arisco. Resmungão.

Caminhando em direção de casa, sentia novo ânimo. Teria dias e dias para trabalhar com seus carrinhos de brinquedo. Para estimular a sua intenção, avista ripas de madeira descartadas na lixeira da floricultura, do outro lado da rua. Não pestaneja, cruza o asfalto e junta a quantidade que cabe nos imensos braços. Com isso, o estoque de matéria prima estaria reforçado.

O percurso é relativamente curto, menos de hora. Mérito do velho Deodato. Assim que empregou Belarmino, mediou a venda do terreno deixado pela mãe do empregado e que ficava muito distante, com uma casa de fundos, bem mais centralizada, de quatro cômodos amplos e um quintal acolhedor, sombreado por generosa pitangueira. Esse era o reino de Belarmino, sua guarida.

No quarteirão seguinte, avista um camburão da polícia quase atravessado na rua, o que traz desassossego a Belarmino. É um mal-estar que o acomete sempre que vê alguém fardado. Jamais foi abordado, mas a fala corretiva da mãe ressoa na cabeça: “se não fizer a coisa certa, a polícia prende!”. Um verdadeiro pavor. Ainda mais desengonçado e sem querer saber a razão do cerco, Belarmino procura sair de cena pela esquina mais próxima.

Quando abre o portão e caminha pelo corredor, é tomado pelo sentimento de libertação. Como se grilhões dos pés fossem rompidos.  Até pouco tempo, saía de casa ainda escuro, e só retornava quando o sol desaparecia por completo. Era o último a deixar o depósito. Preferia andar na sombra, a escuridão não exigia acanhamento, livrava-o dos olhares de repulsa ou de piedade. Ultimamente, como por milagre, essa preocupação ficou arrefecida. A idade passou a exigir mais tempo de cama, acordava mais tarde, o sono ficara mais esticado. O mudar de calçada ou o horror estampado nos olhos das pessoas que o avistavam não trazia mais o desconforto de antes. Aquele tormento que abalava as ideias sempre que precisava amortecer no peito um gesto de repúdio, a necessidade de assimilar a abominação, tudo isso passou a ser detalhe de somenos importância. Não deixou de machucar, mas a ferida secava instantaneamente. 

Em casa, retira o uniforme, macacão marrom com emblema da loja de material de construção apenas no bolso. Tem vários, três novos e outros bem usados. Cuida deles no final de semana, lavados e passados com desvelo. Agora, ficarão esquecidos por um tempo. Terá início a era do calção. E da montagem de carrinhos de brinquedo. Sua fábrica terá produção acelerada.

Belarmino trabalha bem com artesanato em madeira. Faz caminhões, carriolas, automóveis, tudo com perfeição. Desde sempre, quando buscava ovos para revenda, no mercadão, recolhia ripas para a sua obra. E, repetidamente, ressoava a voz de reprovação da mãe: “isso é coisa de moleque, não é coisa de homem”. De começo, usava apenas canivete, lixa e tachinhas. Mas, com o fazer constante, especializou-se: faz carrinhos tão caprichados que até as rodinhas giram. Também fazia pandorgas, mas parou. Para que fiquem perfeitas, é necessário usar bambu verde. Bambu seco não dá o mesmo envergamento, o voo não fica apurado. Belarmino já não tem a mesma disposição de buscar bambu pelas beiras das estradas, caminhada que, ida e volta, leva meio dia. Então, deixou de lado.

É morador silencioso, não tem bichos de criação. Coloca o rádio sempre em volume baixo, e a televisão é só para os jogos de futebol.

Quando se mudou para a nova casa, percebeu que os muros laterais, instantaneamente, foram erguidos. As janelas ganharam grades, a vizinhança reforçou a segurança. Aborrecia-se quando ouvia, em sussurros, opiniões sobre ele. Pela figura, todos o viam como louco, perigoso. Protegiam-se uns aos outros, as crianças o olhavam de esguelha, amedrontadas. Mas acostumou-se. Isso já não importava mais.

Enquanto transforma os paus em brinquedos, pensa em qual árvore irá colocar o próximo carrinho. Sempre assim. Terminado um trabalho, ajeita-o num saco plástico, desses de supermercado, e dependura em árvores perto de escola, creche, parque. Alguém encontra o brinquedo e uma criança ganha o presente. Claro que tem vontade de entregar nas mãos de um garoto, mas teme assustá-lo. Além de constrangedor, a criança poderia recusar o brinquedo. Nem pensar.

E, então, vem a lembrança dos colegas do depósito. São cinco. Alegres, fortes, dispostos. Não fossem as piadas grosseiras, Belarmino até poderia ser mais chegado. Se bem que, há alguns anos, ele trabalha na parte de distribuição e controle de estoque. Os oito anos de estudo serviram para que tivesse bom entendimento da escrita, e aprendesse rápido todo o processo de entrada e saída do material da loja. O serviço pesado, de carregar e descarregar mercadoria, já não lhe cabia. Apenas comandava. Mas, por mais que evitasse ficar aborrecido com as brincadeiras cruéis dos companheiros, brotava aquele incômodo recorrente quando, das conversas cruzadas, escapava o som de palavras como: mal-acabado, zé bonitinho, belzebu, belafera, zumbi... 

Um dia, quis saber da mãe a razão de ser tão estranho. Perguntou: “mãe, por que eu sou tão feio?”. A mãe, sem buscar o olhar dele, respondeu: “você não é feio, só é muito parecido comigo”. Esta resposta selou tudo. Nunca mais questionou, nunca mais perdeu tempo com essa indagação. Se era parecido com a mãe, seria amado. Ele a amava, outras pessoas a amavam. A mãe também não era bonita. Tinha o mesmo rosto comprido, traços estranhos, braços exageradamente compridos, mas os olhos em nada se igualavam aos dele. Os olhos da mãe eram pacíficos, um tanto vazios, mas serenos. As mãos eram imensas. Belarmino, quando criança, ficava assustado quando via a mãe carregando oito ovos na mão. E pensava que aquela mão poderia dar conta de cobrir, por inteiro, a sua cabeça num afago. Mas nunca soube, não conseguiu medir, não havia afagos. Mesmo com toda estranheza e secura no trato, a mãe era retidão, amparo. Ele também seria.

E Belarmino amava com serenidade, um amar que o tranquilizava. Amava o velho Deodato, e também amava o patrão. Amava a primeira professora, única pessoa, além da mãe, que lhe segurou a mão. Isso quando o ensinou a desenhar as letras. Professora Izabel foi o anjo que procurou minimizar o terror que brotava no peito dos coleguinhas quando estes olhavam para Belarmino. Eles temiam aqueles olhos esbugalhados querendo saltar do rosto, entendiam como olhos de louco. Além do que viam, era o que ouviam: o filho da “oveira” é doido, cuidado com ele! Mas não era. E provar isso foi a luta de toda uma vida.

O pior acontecia quando, na época de calor inclemente, Belarmino não escapava dos surtos de piolho que se alastravam pelas cabeças da molecada da escola. No sol, as lêndeas prateavam a vasta cabeleira encaracolada do menino. E para a mãe, sem saída, só sobrava o raspar da cabeça. E doía. No couro todo ferido com as constantes picadas dos parasitas, a lâmina discorria feito lixa, deixando a pele quase em carne viva. E, como se fosse possível, Belarmino ficava ainda mais assustador. A cabeça estreita e comprida, totalmente disforme, ficava totalmente exposta, perdia o disfarce da cabeleira.

O último domingo de maio amanhece muito mais bonito que de costume. Belarmino completa sessenta e dois anos, acorda disposto. O dia merece um passeio, o sol não está forte.  Olhando no espelho, percebe que o cabelo carece, urgentemente, do cuidado do Lazinho da barbearia. Aliás, em março, quando seria o combinado, declinou do compromisso. Depois disso, a quarentena chegou e a cabeleira só se agigantou. A barba, propositadamente, deixou de aparar desde que não precisou mais ir ao depósito; cuidado desnecessário, não tem compromisso que justifique o sacrifício.  

Ajeita a casa, prepara o arroz e quando ele está ainda secando, desliga o fogo, embala a panela em duas folhas de jornal e guarda no forninho. Aprendeu com a mãe. Fazendo isso, o arroz ficará aquecido e totalmente cozido. Corta os tomates e a cebola, deixa a salada na geladeira. Retira a vasilha de feijão do freezer e coloca sobre a pia. Quando voltar, o almoço será finalizado num instante.

Escolhe a bermuda mais nova, a camiseta tricolor, calça chinelos, ajeita a carteira no bolso com documentos e dinheiro suficiente para, na volta, comprar um frango assado. Se encontrar... Mais uma vez, não era uma figura bonita de se olhar, ainda mais com a profusão de pelos da barba e do cabelo. Sim, era estranho, um quê de assustador.

Antes de sair, o mais importante: coloca cuidadosamente um carrinho de madeira na sacola plástica, mas não sem antes admirar a beleza do brinquedo. Perfeito!

Confere o fogão desligado, janelas fechadas, passa a chave na porta.

Hoje quer andar. Caminha em direção contrária daquela que sempre segue. E tem tanta coisa para olhar. Lugares diferentes, casas diferentes, pessoas diferentes. 

Sente-se tão satisfeito, tão absolutamente em paz, que nem percebe o rosto das pessoas com as quais cruza. Se percebe, não revela. Mas nada mudou. O trocar de calçada, os olhares piedosos, os arroubos de aversão, a apreensão no desviar de corpo, o temor por um ataque. Tudo tão visível até para os menos avisados. Mas Belarmino releva. Hoje não vê. Ou não quer ver.

Depois de mais de hora caminhando, chega numa praça enorme, arborizada, entre o colégio e a igreja.

Com a sacola plástica na mão, senta-se num banco mais isolado. Há muita gente na praça, contrariando as orientações das autoridades. As gangorras não sobem e descem, não há o vaivém dos balanços. A área dos brinquedos está toda abraçada por fitas pretas e amarelas, acesso proibido. Apenas os triciclos das crianças se esbarram. Um amontoado de vozes, gargalhadas e gritos alegres das crianças. Nada de pipoca, sorvete, balões coloridos.

Apenas um menino, infringindo a regra, está na areia. Só ele. Belarmino aperta nas mãos a sacola com o brinquedo. Sente vontade enorme de, pela primeira vez, entregar um brinquedo assim, olhando para a criança. Mas teme que o menino fique assustado, que chore.

Procura um banco mais próximo dele. Precisa de tempo para tomar coragem.

Em nenhum momento percebe o olhar enviesado dos adultos. Nem se preocupa com isso. Está maravilhado. Finalmente irá entregar nas mãos de uma criança um brinquedo feito por ele. Deseja ver o sorriso, sem susto.

Sem que perceba, os adultos começam a se juntar em conversas paralelas. Ele não vê. Aos poucos, as crianças vão sendo levadas pelos pais, pelos avós...  E houve quem acionasse o guarda da praça e, então, uma viatura policial chega.  

Belarmino só percebe algo estranho quando a mãe, bruscamente, retira a criança da areia.

E então vê, na sua frente, o policial com uma arma apontada para o seu peito.

− Você é louco, homem? Como se atreve a chegar perto da criança? O que quer com ela?

− Não, eu não sou louco...

− Largue a sacola no chão e ergue os braços, vamos!

Desesperado, Belarmino obedece. Solta a sacola no chão e começa a erguer os braços. O pavor sem medida quase o paralisa, os braços pesam. Sente a cabeça rodar, pensa na mãe, no velho Deodato, no patrão... Quer ajuda, precisa de ajuda. Mas, ali, não tem ninguém. Atormentado, num repente, gira o corpo e tenta correr. Só ouve um tiro. 

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