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Joana, Só... Regina Ruth Rincon Caires


Final da primavera de 1951.  Madrugada de lua cheia...
Pela janela aberta, a claridade prateada inunda o quarto. Sentada ao pé da cama, encostada na parede, abraçada às pernas e com o queixo recostado sobre os joelhos, Joana observa o rosto sereno do filho que dorme feito um anjo. Por que tinha que ser assim? Por que a vida tomou esse rumo?
Olha do lado, na outra cama, e vislumbra por entre as cobertas, os rostinhos das duas filhas. A mais velha, de fartos cachos de cabelo dourado que com a luz da lua cintilam como uma nuvem de vaga-lumes, e a mais nova, de pele alva como leite e cabelos negros azulados. Ambas dormem profundamente, alheias aos percalços que a vida silenciosamente arquiteta.
O início de tudo foi numa triste tarde, quase noite. Antônio ainda não havia chegado da roça. Joana acabara de banhar as crianças, sentia-se enjoada com o princípio da nova gravidez, e fazia um esforço tremendo para esquentar as panelas no fogão de lenha, no preparo da comida, quando de repente ouviu um estampido.
Correu para perto das meninas e, assustada, olhou pela janela da cozinha, sem compreender o que estava acontecendo.
Ficou por um tempo agarrada a elas e, assim que recobrou o tino, percebendo que havia barulho de choro abafado, pediu para que as meninas ficassem quietinhas e foi ver o que acontecia.
Já na varanda, olhou na direção da casa do pai de Antônio e, com certa dificuldade por causa da penumbra que a noite trazia, percebeu que havia movimento de pessoas. Constatou que o choro vinha de lá, e as vozes também.
Atônita, seguiu na direção dos sons e, assim que chegou perto, parou petrificada. Na entrada do alpendre da casa do pai de Antônio, perto da cisterna, estava um homem estirado no chão, rodeado por uma poça de sangue.
Joana forçou a vista e percebeu que se tratava do colono Malaquias, homem forte, queimado de sol. Sempre de poucas palavras.
O choro que ouvira era da mãe de Antônio. Ela chorava, lamentava, implorava aos céus por orientação, estava completamente desnorteada, e andava de um lado para outro perguntando ao marido o que deveria fazer...
Olhando mais adiante, perto da porta da cozinha, Joana viu o pai de Antônio parado junto à parede e, mais atrás, estava Seu Avelino que tinha o rosto crispado, os olhos fixos no homem estirado no chão.
Seu Avelino mantinha os braços caídos rentes ao corpo, e trazia em uma das mãos uma carabina.
Num sobressalto, percebeu que o colono estava morto e, sem dizer qualquer palavra, Joana entendeu que o tiro havia partido daquela carabina e que, provavelmente, Seu Avelino teria feito o disparo. E ela estava certa.
Mais tarde soube que o colono tivera um desentendimento com o pai de Antônio, havia algum tempo. A mágoa foi se avolumando e, naquela tarde, por causa de uma pendenga sobre uma saca feijão, o colono armado com um facão foi até lá, e depois de uma nova discussão, investiu contra ele, jurando que o mataria.
Seu Avelino era outro colono da fazenda, casado com Dona Célia. Um homem calmo, sério, pai de oito filhos, compadre e amigo do pai de Antônio. Contou que durante toda a tarde ouviu Malaquias esbravejar exaltado, praguejando e arquitetando a ida até à casa do patrão para fazer o que dizia ser o “ajuste final das contas”.
Percebendo que algo muito sério estava para acontecer, Seu Avelino ficou à espreita, e quando viu que Malaquias se armou e seguiu para a sede da fazenda, não titubeou. Numa corrida desenfreada, esgueirou-se por entre os pés de café, chegando à casa do pai de Antônio minutos antes de Malaquias.
Entrou pela porta da sala. Sabia que o compadre estaria sentado no alpendre dos fundos, como sempre, fumando seu cigarro de palha, com um cotovelo apoiado no canto da mesa.
Seu Avelino passou pelo corredor que ladeava o quarto principal, pegou a carabina carregada que ficava costumeiramente dependurada atrás da porta desse quarto, e seguiu para a cozinha. Nem teve tempo para explicar ao patrão o que estava para acontecer, porque, antes de chegar ao alpendre, antes mesmo de atravessar a porta da cozinha, Seu Avelino avistou Malaquias no terreiro, chegando ao degrau do alpendre.
Seu Avelino parou, percebeu que o patrão ficara assustado com a chegada intempestiva do colono Malaquias vociferando transtornado.
A discussão foi rápida, quase só Malaquias falava, esbravejava. E quando o colono fez menção de se jogar contra o compadre com o facão em punho, Seu Avelino apontou a arma e atirou no peito do sujeito.
Foi um único e certeiro disparo, o mesmo estampido que assustou Joana e que fez com que a mãe de Antônio saísse correndo do galinheiro, onde recolhia os ovos daquele dia, e sem entender o que estava acontecendo, caísse em prantos e clamasse aos céus por clemência e orientação. 
Tudo foi muito rápido. Aconteceu e estava feito. Não tinha volta. Era a realidade e não havia nada a se fazer.
Aos poucos, Seu Avelino foi recobrando os pensamentos, estava trêmulo, com os olhos vermelhos, e continuava calado.
O pai de Antônio, depois de ralhar com a mulher exigindo que ela parasse com o choro e com as lamentações, virou-se para o compadre e pegou a arma. Disse a ele que ficasse calmo, fosse para casa, e não comentasse nada sobre o ocorrido, nem mesmo com a Dona Célia.
Seu Avelino olhou mais uma vez para o corpo daquele homem imerso numa poça de sangue, rodopiou sobre os calcanhares e, mecanicamente, saiu pelo mesmo lugar por onde havia entrado momentos antes.
Ninguém viu Joana ali, e ela calada, sem fazer qualquer ruído, voltou para casa.
A noite havia chegado de vez, e, com ela, Antônio surgiu no terreiro. Estava todo suado, com a roupa suja de terra, resultado de um dia de trabalho pesado na roça de café.
Era costume, ao final do dia, quando voltava da roça e antes de se recolher, passar pela casa dos pais para tomar a bênção. E naquele dia não foi diferente.
Foi sim...  Naquele dia tudo foi diferente.
Antônio chegava com o corpo cansado, mas com a alma leve, estava tranquilo, feliz com mais um dia trabalhado, feliz de voltar para a família, feliz como há muito tempo se sentia, ou como sempre se sentiu. Mas a cena que encontrou foi como um nocaute. Seus miolos não conseguiam atinar o que havia acontecido ali.
Olhou aquele homem caído, mais adiante viu seu pai sentado no canto do alpendre, apoiado na mesa, o brilho da lamparina clareava seu rosto abatido, os olhos assustados, o cigarro de palha apagado no canto da boca, e ouviu o choro abafado da mãe na cozinha.
O pai, vendo o espanto do filho, chamou-o para perto, explicou o acontecido, e pediu a ele que preparasse um cavalo, que fosse até à vila providenciar o sepultamento e comunicar o acontecido para a autoridade do Cartório.
Explicou a Antônio que Seu Avelino atirara para protegê-lo, que o compadre não poderia ser envolvido no caso, pois tinha oito filhos para criar, e não havia testemunha do disparo a não ser ele mesmo.
Então, Antônio foi orientado a dizer para a autoridade na vila que ele mesmo, Antônio, havia disparado o tiro para proteger seu pai.
E assim foi feito. No escuro da noite, montado no seu cavalo de lida, Antônio foi até à vila que era razoavelmente próxima. A autoridade providenciou a retirada do corpo poucas horas depois e como não havia delegacia e nem delegado na vila, não havia telefone, nem telégrafo, a comunicação foi feita por carta para a central regional da polícia. Dessa maneira, só restava esperar a chegada da autoridade competente para que fosse enfrentado o desdobramento do caso.
O pai explicou a Antônio que, como o tiro fora disparado para defender a vida do pai, Antônio, certamente, assumindo a culpa como fizera, seria apenado com poucos meses de prisão, e que tudo seria resolvido rapidamente. Pena que certamente seria muito mais severa se fosse aplicada a Seu Avelino, por não ter grau de parentesco com o patrão. Era assim que o pai de Antônio pensava, e foi nisso que o filho acreditou.
Antônio estava desarvorado. Temia pelos filhos, pela mulher e por ele mesmo. Nunca saíra do seu canto. Nunca acordara em outro lugar. Suava frio quando pensava que teria que viajar para longe, sozinho. Nunca fizera isso! Mas sabia que teria que se resignar, aliás, já estava resignado, e não falava sobre isso. Nem com Joana. O que seu pai havia decidido era o mais correto a ser feito. Afinal, poucos meses passariam rapidamente, e não seria justo que Seu Avelino ficasse preso. Como poderia sustentar a mulher e seus oito filhos?
Antônio nem conseguia dormir tamanha a insegurança que tinha na alma, e sabia que Joana, mesmo quietinha na cama, também não conseguia. A cada dia que se passava a agonia dos dois se avolumava. Não falavam sobre isso. As coisas seriam como deveriam ser, e pronto.
Depois de duas semanas sofridas, o jipe da polícia chegou. O delegado conversou com o pai de Antônio, entregou uns papéis, e Joana foi destacada para ir até a roça para chamar o marido.
Vieram em silêncio, vagarosamente, como não querendo chegar. Joana arrumou a mala com as poucas roupas, e Antônio vestiu-se com a melhor troca, despediu-se discretamente diante das crianças, e seguiu no jipe da polícia com o delegado e o milico. Estava calado, com os olhos apavorados, mas não chorava.
O choro ficou apenas para as mulheres. A mãe de Antônio, vendo o jipe sumir por entre os pés de café e a nuvem de poeira, enxugou os olhos na ponta do avental e voltou para a cozinha.
Joana, segurando as meninas pelas mãos e carregando o mais novo na barriga, com a alma em soluços, rumou para casa. Meu Deus! Como seriam esses meses?
E as noites foram longas... E as lágrimas não cessavam... E a barriga crescia cada vez mais, feito a saudade.
Não chegava carta. Antônio não sabia escrever, e nunca pediria para que alguém o ajudasse. Imagina se ele contaria alguma coisa para qualquer estranho!
E o filho nasceu... Um menino grande e forte, como o pai. A ele foi dado o nome do avô. Joana sabia que Antônio, distante, estaria aflito, apavorado e muito triste por não estar junto dela naquele momento. Pelas contas deles, quando a criança nascesse, certamente a pena já estaria cumprida, e ele já estaria em liberdade. Mas, isso não aconteceu. A pena estava sendo muito maior que o esperado.
Era a vida... E um ano se passou...
Nada de Antônio ser colocado em liberdade, e então Joana foi informada, pelo sogro, que ele fora condenado a uma pena total de três anos de prisão. Quanta dor! Apenas um ano havia se passado, e havia mais dois pela frente. Quanta solidão! As meninas, com quatro e dois anos, o menino com seis meses, e a vida precisava seguir em frente.
E seguia, só Deus sabe como...
Joana contava os dias, calada. Conversava com os pais de Antônio apenas o trivial, o corriqueiro, era o costume. Não se falava em tempo de espera, em saudade, em dor.
Todos sentiam tudo, mas ninguém falava...
A mãe de Antônio cuidava de ajudar Joana nas tarefas, principalmente no cuidado com as roupas e no preparo dos pães. Era bondosa, de olhos mansos, piedosa, subserviente. E Joana, também.
Apesar de forte, de extremamente organizada e generosa, a mãe de Antônio era devotadamente submissa ao marido. Não exigia explicação alguma, não questionava nada, não contestava, apenas vivia, ou melhor, respirava...
Passados três longos anos, a colheita de café agitava os colonos num vaivém incessante, o sol estava começando a declinar naquela quarta-feira, quando Joana ouviu o som de uma condução que se aproximava.
Com o coração aos pulos foi para a janela e avistou o jipe da polícia. Nem sabia o que fazer. Queria estar bem bonita para o reencontro com Antônio, mas num ímpeto, nem se lembrando disso, correu para o terreiro, sem mesmo tirar o avental.
E viu Antônio... E se assustou...
Ele estava magro, excessivamente magro, amarelo, olhos fundos, entristecido, curvado, abatido, com uma palidez macilenta, e quando falou seu nome, Joana percebeu a voz muito fraca. Só o carinho que Joana viu em seus olhos lembrava o Antônio que havia partido três anos antes.
Ele estendeu a mão num cumprimento, e procurou rapidamente, com os olhos, os seus filhos. Eles vinham correndo buscando a mãe. As meninas não reconheceram o pai, e o menino ainda não havia sido apresentado a ele.
Antônio despediu-se dos policiais, pediu a bênção dos pais, pegou a mala e rumou vagarosamente para casa, seguido por Joana e pelos filhos.
Os policiais ficaram conversando por alguns minutos com os pais dele, e depois se foram.
Antônio entrou em casa. Ficou um bom tempo olhando para as paredes como se estivesse matando a saudade que sentia no peito, e demorou a soltar a mala.
Joana estava feliz com a chegada do seu Antônio, mas o coração apertado tentava contrariar a sua vontade e colocava uma névoa de preocupação na sua alegria. Sentia que o marido não estava bem.
E não estava mesmo. Na prisão, ele havia contraído várias doenças, e a tuberculose havia minado suas forças quase por completo. A falta de sol, a falta de se exercitar como fazia na roça, a alimentação precária e a solidão daqueles anos todos lhe roubaram a saúde.
E mesmo feliz por estar de volta, Antônio não conseguia reagir aos males do corpo. A febre não cedia, a prostração o dominou. Foi se finando, foi se esvaindo, até que a vida lhe escapou das mãos.
Foram dias difíceis, angustiantes, nos quais Joana teve a impressão de ter sido levada, de ter sido arrastada, porque não se lembra de muitos detalhes.
Depois de tanta espera, depois da volta, em apenas poucos meses, Joana se via novamente só. Não havia o que esperar. O seu Antônio não voltaria mais, tinha partido para sempre.
Agora, ali, olhando os rostos serenos dos filhos, com o coração enlutado, com as forças querendo abandoná-la, relembra tudo e nem revolta sente. Não reclama, não blasfema, não se insurge, não maldiz, não se inflama. Continua apática, abatida, resignada. É o costume...
Queria apenas entender...
Assim que amanhecer irá de mudança para a vila. É chegada a hora da filha mais velha começar na escola. O pai de Antônio arrumou uma casa na vila para ela e para as duas meninas. O menino ficará ali, com o pai e com a mãe de Antônio. Será criado por eles no costume do sítio para pegar gosto pelo trabalho na terra.
Joana está amargurada com mais essa separação. Assim foi decidido e assim será...
O sol clareia o terreiro, os parcos pertences são colocados num velho caminhão que chegou. Joana e as meninas amontoam-se na pequena cabine com o motorista, e o choro gritado do filho, que se contorce para sair do colo da mãe de Antônio à procura dos seus braços, entra por seus ouvidos e parece querer fazer explodir seu peito com tamanha aflição.
A dor que Joana sentiu ao parir foi infinitamente menor se comparada a essa que aperta seu peito nessa separação. É agora como uma lança em chamas a rasgar a carne, o ventre, retirando o filho do seu convívio. Não irá mais estar presente nos dias da vida dele, não acompanhará seu crescimento, não irá mais velar-lhe o sono, não estará presente para aliviar seu medo nas noites de chuva... Mas, é a vida...
O caminhão segue pela estrada poeirenta.
Joana também deve seguir em frente...
E seguiu... 

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