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Estive Cara a Cara Com Deus, Ignácio de Loyola Brandão


Tiradentes – A semana para mim começou em Tiradentes, Minas Gerais. Na Pousada Alforria, subi para o café da manhã e encontrei Antonio Magalhães, o dono, que me saudou com a pergunta: “Tem visto Ana Helena?” A única que eu conheço, inesquecível,  é a Ana Helena da Capitu. Livraria que teve curta duração, mas marcou a vida cultural em São Paulo nos anos 1970 para 1980. Época em que pequenas livrarias sobreviviam, marcavam presença, cada uma com sua personalidade. Magalhães acrescentou: “Lembra-se daquele lançamento debaixo da chuva?”
     Como esquecer? Era 1979, estava saindo a terceira edição do Zero a primeira liberada, após três anos de proibição. Mais do que um lançamento foi uma manifestação pela liberdade e contra a censura. Havia tanta gente que a fila se estendeu por quadras e quadras na Rua Pinheiros, porque a Capitu era pequena. Começou a chover, ninguém arredou pé, a festa continuou com as pessoas molhadas e felizes. De repente, no interior do sul mineiro, em uma cidade histórica de 3 mil habitantes, olhando a neblina que cobria o topo da Serra de São Jose, a vida mergulhou com a coalhada fresca e os pães de queijo, foi para o escritório e logo o café da manhã foi tomado pelo som do violoncelo de Rostropovich. Depois, ai me ver saindo, Magalhães sugeriu:
      -Por que não vai ver Deus?
     - Deus?
     -Sim, aqui você pode estar com Deus, cara a cara.
     Sorriu, deu indicações, caminhei pela Rua da Praia (ainda que não haja praia), subi a Rua da Cadeia, Largo do Sol, casa do Padre Toledo, onde os Inconfidentes, se reuniam, e cheguei  ao Santuário da Santíssima Trindade, no alto. Uma escada interior leva ao alto do altar e ali me vi diante de Deus. Cara a cara. Olho no olho. Conversamos uns minutos. Em geral, na Santíssima Trindade, Deus é representado por um olho. Ali, em Tiradentes, Deus é a imagem de um homem alto, forte, barbudo, cabeça coberta por uma mitra, as mãos estendidas, rosto severo e sereno. Uma coisa rara. Está com as mãos abertas para o mundo. Não sei, Minas e mineiros têm suas coisas à parte. Temos de aceita-los e amá-los, não compreendê-los.

     A literatura tem feito muitos escritores descobrirem um Brasil, não digo subterrâneo, mas que cria silenciosamente, com pessoas preocupadas com seu meio, seu lugar, o entorno. Como Maria Lídia Montenegro que, depois de trabalhar no mercado financeiro, se refugiou com o marido Ricardo em Tiradentes e decidiu tocar para a frente o Centro Cultural Yves Alves, em uma casa antiga que é puro encantamento. Ela conseguiu colocar 300 pessoas no auditório e a conversa só terminou porque a hora ia adiantada.  Ou Luiz Antonio da Cruz, professor de matemática, bombeiro voluntário, ecólogo, agitador cultural, e que escreve ensaios sobre cultura regional. Maria José Boaventura, que todos chamam de Marijô, artista plástica que penetrou em uma arte complexa, desafiadora e fascinante: fazer ilustrações em braile. Ou Maria de Fátima Unes Ticle, de Lavras, encampando todos os projetos culturais para agitar a cidade. Ronise Maciel e Ângela de Moura Galo, que, com a assistência de Cristiane, professora e fotógrafa, desvendaram histórias e paisagens de Três Corações.
     Sem esquecer a ousadia de Ana Maria abrindo uma livraria como a Obra-Prima, moderna, aconchegante e bem fornida de todos os tipos de livros. Mauro dos Reis e Elizabeth da Silva, da Secretaria de Cultura, braços direitos da pró-reitora Valéria, ao colocarem 600 pessoas no auditório da universidade, em São João Del Rey. Trabalham pelos livros, pelas pessoas. Em Tiradentes se refugiam Sergio Paulo Rouanet, diplomata aposentado, acadêmico, autor da famosa lei que todo mundo procura, e sua mulher, a cientista social Bárbara Fritag. Além de Eros Grau, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e sua mulher Tânia.*
     Três Corações foi a última cidade do trajeto de uma semana pelo interior mineiro, levado pelo  projeto TIM, Grandes Escritores Estado de Minas. Criado por Marcelo Andrade e encampado pela Tim, o projeto pode ser enquadrado no texto de Ronald A. Fernandes, de São Thomé das Letras: “Temos de levar em conta a distância física entre o brasileiro comum e a cultura produzida pelas pessoas que produzem cultura e, mais ainda, porque a existência  física desses produtores de cultura costuma soar ainda mais fictícia que a de seus personagens. A aproximação, o encurtamento dessa distância é, no mínimo, louvável”.
     A meu ver, esse encurtamento é o que vem sendo feito pelo projeto que já está ampliando o circuito, uma vez que Paraíba e Sergipe estão entrando nas programações. Acho ótimo avançar pelo interior do Brasil em lugar de ficar rodando apenas por São Paulo e Rio que  já têm coisas demais, muitas nem aproveitadas. A biblioteca de cada cidade visitada recebe 200 exemplares com obras de 12 autores que participam de cada etapa.
     Sábado, muito cedo, enquanto o motorista levava minha bagagem para o carro que me conduziria a São Paulo, o jovem recepcionista Ricardo Marcato, entrando em seu turno, lamentou não ter tido tempo de ir à palestra da noite anterior. No entanto, retirou de uma mochila o livro de poesias Deixe Ser , que é metade dele com o título Atrás das Grades de Papel Sulfite  e metade de Roberto Ferreira que assina Do Auto da Montanha Iraniana. Dois dias antes, eu havia descoberto em Lavras a poesia de André Di Bardi em Longes Pertos e Algumas Árvores, um livro curto e muito bem editado, de onde tirei a frase com que abri minha fala ( e abrirei todas, daqui para o futuro) e que define o ofício de escrever:
Há que se desenhar
Em paredes abstratas
E em papeis remotíssimos
O que jamais houve.
Tem melhor explicação? Não está longe o dia em que a poesia de André circulará pelo Brasil. Mas como furar o cerco do eixo Rio-São Paulo? Foi uma semana de livros e literatura, e como ninguém é de ferro, algumas dicas devem ser dadas à parte. Como o sanduíche de linguiça caseira do Belvedere, na estrada, a meio caminho entre Belo Horizonte e Tiradentes. Ou os rocamboles de Lagoa Dourada, anunciados como “legítimos”. Deliciosos.
     Necessária uma passagem pelo Café Com Prosa, entre Lagoa Dourada e Tiradentes. Indo de carro, ao ver a placa Caminho Real, opte por ela, é um caminho antigo, de paralelepípedos, lindo. O jantar em Tiradentes tem de ser no Theatro da Villa, onde o chef  Carlos Eduardo comanda uma cozinha impecável, delicada e saborosa. Sofisticada como se estivéssemos em Paris. Em São João Del Rey, um momento de estranha nostalgia que me  levou à cadeira do dentista. Este era o Solar dos Lustosa, me disseram. O Lustosa da cera de dentes. Aquela que tinha um cheiro terrível, pior que o mau hálito, e que nos queimava a boca na infância. Os mais velhos se lembravam da cera de cheiro forte e característico, que suavizava terríveis dores de dente. O Brasil sempre teve dentes ruins e pode-se ver isso pela fortuna que os Lustosas amealharam, construindo este solar imponente. Com nossos dentes precários, eles se deram bem.** Aliás, deslumbrante é um passeio pela solidão da cidade velha, na madrugada, sob a luz dos lampiões (fakes, mas belos). Nos perdemos no tempo, saímos da realidade. E não estamos vivendo tempos de Lula, em que a realidade parece ter perdido o sentido?  
(28 de maio de 2004)
*Não deixem de ler o mais recente livro de Eros Grau, Paris Quartier Saint-Germain-des-Près, um guia delicioso sobre a cidade, com mil dicas e histórias curiosas sobre os parisienses.


**Quando lembro do Lustosa e da cera, penso nos milhares de jovens de hoje que ostentam seus aparelhos para consertar dentes. A coisa adquiriu tal proporção que jovem que não tem aparelho se sente marginalizado. Não é só necessidade, é tendência e como se sabe vivemos obedecendo as tendências.
Largo das Forras - Tiradentes, MG
     
Brandão, Ignácio de Loyola O Mel de Ocara, Ed,Global,São Paulo 2013, págs. 93-97
Leia também Filhote de Pai D' Égua, Ignácio de Loyola Brandão (Cidade: Belém do Pará)

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