Talvez o desconforto
tenha começado no momento em que chegara ao mundo, quando aquela invasiva
claridade do holofote, na sala de parto, acertou o seu olhar, impiedosamente.
Acho que foi ali, ou em qualquer outro lugar. A única coisa que sabia era que
havia um desconforto, um descompasso. Nascera diferente. Di-fe-ren-te -palavra
estigmatizante, um codinome que ecoou nos pensamentos durante seus inocentes nove
anos. Reiteradamente dita, parecia gravada nos lábios que lhe falavam, nos
olhos que lhe fitavam, nos gestos de espanto que lhe dirigiam. E, ironicamente,
ele não falava. Ouvia silenciosamente, mudo.
E, por ser assim
diferente, gozava de certas regalias. Não lhe cabiam tarefas, era livre. Se é
que é possível ser livre dentro do alcance das vistas de adultos. E sua cabeça
voava, gostava de voo. O carrinho não era conduzido na pista desenhada do
brinquedo, o trenzinho não corria nos trilhos. O fascínio estava no girar das
rodas, no girar das hélices, no girar, girar. E no voar. Os carros voavam no
ar, os trenzinhos, os aviões, os helicópteros, tudo suspenso nas mãos, tudo fazia
parte da revoada circular. Tinha alma de pássaro.
Companheiro inseparável
do pai, diariamente fazia o curto trajeto de entrega das verduras e legumes, da
fazenda até à cooperativa. Saíam antes de o dia amanhecer, e cruzavam o vale
quando o sol começava despontar. Era o momento mágico. O paredão de pedra que
se desenhava ao fundo, negro, apinhado de ninhos de aves gigantescas, era o
palco do espetáculo de todos os dias. O cenário enquadrava o alto do penhasco e
um precipício gigantesco. Seguindo o ritual, o pai desligava o carro, abria a
porta para que o filho saísse e pudesse acompanhar a magia. Lá, no pico do desfiladeiro,
as aves lançavam-se no precipício, e
davam a impressão de que cairiam verticalmente rente ao penhasco, em linha
reta, e, num átimo, em questão de segundos, as enormes asas se abriam como se
fossem aparadores divinos, anjos ocultos, e a pressuposta queda era
interrompida por um resgate elástico do voo.
O menino prendia a
respiração enquanto acompanhava o mergulho de um pássaro, e o seu semblante
serenava quando as enormes asas retomavam o voo. Acompanhava um pássaro, dois,
três... Ficava ali, embevecido, extasiado, flutuando, até que o pai o trouxesse
de volta para o confuso, para o complicado mundo dos incômodos.
Aquela cena, revivida
todos os dias, fazia parte do mundo de fantasia do menino. Sentia-se um pássaro.
Era um pássaro. E um dia voaria.
As tentativas foram
saindo do chão, os braços já sabiam girar no ar todos os brinquedos. Agora
precisava treinar as pernas. Começou pelo sofá, pela cadeira um pouco mais
alta, passou para a mesa da cozinha. Em meio aos berros preocupados da mãe, o
menino se jogava repetidas vezes de todos os móveis da casa. E não reclamava de
dor. Não a sentia.
E na cabecinha
arrebatada pelo propósito, que talvez nem propósito fosse, o voo persistia. Era
foco seleto, visão única daqueles olhinhos bailarinos, teimosos em se fixarem apenas
em coisas, em realidade concreta, fugitivos dos olhos de gente.
Durante muitas noites,
despertava trêmulo pelo sobressalto de uma queda, sentindo falta de chão,
sonhos recorrentes. E eles ficavam guardados, não havia como explicá-los, como
falar sobre eles, então ele apenas os vivia. E voava sozinho.
Era alvorada de um dia
qualquer, nada diferente de tantos outros, mas, nesse, o menino não estava na
cama, como de costume. Saíra na noite anterior, caminhou pouco até chegar ao
sopé do desfiladeiro. Na verdade, ninguém sabe quanto demorou, mas é sabido que
chegou ao topo, exatamente no mesmo lugar de onde as aves alçavam voo. E
voou...
Imagem do Google
Da mesma autora: Flor-de-capitão e Dribles do Passado
Imagem do Google
Da mesma autora: Flor-de-capitão e Dribles do Passado
Sou apaixonada nesse texto.
ResponderExcluirE hoje ele faz mais sentido. Tem 10 minutos que descobri que o Autismo chegou - de novo - na minha família.
Não é fácil, acredito. Meu abraço, Elisabeth.
ResponderExcluirBem bom o texto. Narrativa simples.Enquadra-se em muitas coisas.Bom não, Gostoso.
ResponderExcluirBom dia, a autora tem outros bons textos neste blog. Agradeço a visita, caro desconhecido.
ExcluirVoei junto.
ResponderExcluirBom dia, Elias. texto doce, não é? A autora tem outros contos no blog. Pode procurar pelo nome. Abraço.
ExcluirDivinamente escrito com todo sentimento que o tema exige! Parabéns!
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