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A Astúcia do Cachorro, Aparecido Raimundo de Souza

     
     No tempo que os animais falavam, conta uma lenda que um cachorro estava no meio da floresta, se banqueteando com restos de ossos quando atrás dele, uma onça faminta, de garfinho, faca e guardanapo no pescoço se preparou para dar o bote. Pressentindo que viraria almoço, o coitado, mais que depressa, pensou rapidamente numa saída. Assim, sem se mover gritou o mais alto que pode:
     – HUMM!… QUE ONÇA DELICIOSA ACABEI DE DEVORAR…
     Ouvindo essas palavras, a onça se assustou. Ato contínuo abortou o pulo pretendido, deu meia volta e saiu correndo, só parando quilômetros depois, exausta, e à beira de um riacho de águas cristalinas:
     – Escapei por pouco, daquele cachorro!…
     Entretanto, do alto de um pé de jequitibá um sem vergonha de um macaco assanhado assistiu a tudo.     Dando uma de fofoqueiro, correu a contar sobre o golpe do cachorro:
     – Então é isso?
     – Sem tirar nem por…
     – Pois ele me paga!… Venha atrás de mim e veja o que faço com quem tenta me passar a perna.
     Fula da vida e babando de raiva, a onça mais que depressa empreendeu o regresso ao local levando o primata a tiracolo. Como se esperasse pelo retorno da inimiga, o cachorro, sem pensar duas vezes e, vendo a difícil situação em que se achava metido, não perdeu a esportiva e jogou a última carta que lhe restava ao alcance das patas. Ou salvava a pele, ou virava, de uma vez, o prato principal da furiosa ferina, aliás, de presas afiadas, e com o sangue a aflorar a pele pintada. Sem se mexer, e ao menos esboçar medo mórbido que sentia para o casal que estancou a poucos passos de seu rabo, (podia até sentir o hálito quente dos dois) berrou com todas as forças que conseguiu reunir no fundo da garganta:
     – CADÊ AQUELE MALDITO MACACO? JÁ FAZ MAIS DE MEIA HORA QUE MANDEI O SAFADO BUSCAR OUTRA ONÇA E ATÉ AGORA, NEM SINAL DO DESGRAÇADO. VOU SAIR À CATA DELE, AGORA!!!
     Ouvindo essas palavras, o macaco que seguia a onça tratou de dar o fora trepando na primeira árvore que avistou pela frente. Na subida esqueceu algumas bananas que roubara para o almoço.
     A onça, sem ação, fez o mesmo. Empreendeu meia volta às pressas e se embrenhou na mata virgem, deixando o cachorro às voltas com um largo sorriso de satisfação entre os dentes.

Moral da história. Às vezes mais vale um pensamento rápido que a fome de mil onças.

Nota: o blog manteve a grafia original.
Fotografia: Leandro Silveira

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