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O Último Bloco, Antonio Falcão


    A fome pra quem come, a cama e o amor, a liberdade do homem, o peso diário do corpo a corpo com a palavra escrita. O frio da ciência, o universo, a correnteza e o rio, o movimento, a cor, o som, a forma, as artes... Eu digitava este texto e Áurea, minha mulher, pôs uma fita pra tocar. Foi quando a voz mansa da compositora Lêda Valença entoou: Um novo amigo abriu as cortinas do tempo / que o sopro do vento se encarregou de esgarçar... 
     Em matéria de inédito, o melhor que por estas bandas de frevo-canção.
     Mas me levou a um outro fevereiro...
     De catapora, aos 12 anos, de bruços na janela suburbana, minha rua empoeirada de acanhados papangus e la ursas, tão pobres - nós todos e o bairro, uma miséria só. A alma, palco e palhaço de perdida ilusão. E o bloco "Sou eu o teu amor", de Cacho de Côco, arregaçou a esquina, esparrento e amostrado. A orquestra, o abre-alas, a alegria e o passo da cabroeira; a voz esganiçada das pastoras protegidas por cordas de segurança, elas e o povo a bailar e a cantar politonando - eh! lembrança...

     À frente do cordão, ícone e rei etíope de nobreza primitiva, Cacho de Côco lusidio, mistura de  carnavalesco e técnico de futebol, fazendo que nem. E tudo sem olhar de banda (a rigor, não via mesmo), imponente, de apito na boca, cumprindo um ofício, a velha indiferença dos ídolos. Quem não o conhecesse, iria pensá-lo "mascarado" - e com razão.
     Mas, pra mim, convalescente, abusando de seus presumíveis 15 de idade juvenil, a pastorinha sorria. Alumbramento foi aquilo, seu Manuel Bandeira
     Ali, a pátria amada de hímen complacente à mostra, oferecida,ofegante, sex-appeal, safada de sangue, suor e sacrifício. Igualzinha ao"gênio da raça", ensopado na terça-feira gorda da lira de Ascenso Ferreira.
     Perdi fôlego, bonde e esperança - não era pra menos. A pastora insistia olhando, remexendo pra mim, mostrando o fundo das calças, dando lances... Minha ânsia a mil, o friozinho na espinha, o baticum no peito, cacos da libido pra todo lado. Mamãe, atraída pelo som do bloco, veio ver a função, notou-me o embaraço, a moça se desmanchando em requebros. Mas,solidária e discreta, moitou, fez que não viu. Disse de riso cúmplice: "Pena você estar com essa catapora, filho" - e voltou pro interior do nosso lar agrestino. Não durou muito e o cordão "Sou eu o teu amor" sumiu na esquina - para sempre.
mais de 40 fevereiros busco esse Carnaval do último bloco. Foi-se o Agreste, foi-se a infância, foi-se a minha mãe... Ficaram esperas e incertezas. Volta e meia, cheirando a cheiro de lança-perfume no ar, vem o gosto daquela pastora morena tremendo pra mim, eu na pureza dos 12, ardendo de emoção; minha rua, minha renda e meu povo, pantomimas da miséria do Brasil. Tudo de carona no Expresso Meteoro de Prata, que escorre pelo Rio Una desde os anos 60, sem jamais desaguar dolente em mar algum. Mas vadeia moleque no frevo de Lêda, no jeito de Lêda compor - consciente - que não é Diana, que tem sonho e partido, que quer seu bloco vestido de pastoril folião...
     Diabo é que, em parte nenhuma, pastora qualquer, de cabelo cacheado ou não, tornou a me olhar daquele jeito. Paciência. Mas, se o fizesse, nos meandros da solidão eu lhe contemplaria com todo o fulcro da brisa da manhã, uma flor de primavera, o fulgor da estrela papaceia.
Falcão, Antonio. O Tango das Meretrizes, Recife, 1997 
Imagem: A Meninadela

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