Caminhando
pelas calçadas congestionadas por camelôs que pagam propinas aos
vereadores e, portanto, estão autorizados a montar suas barracas, ele
hesitava diante da quantidade de bancas vendendo calcinhas e sutiãs.
Desde que a Tiazinha começara a ter sucesso, as bancas exibiam modelos
os mais diferentes, procurando excitar as mulheres na conquista dos
amados. Percebeu que parte dos compradores eram homens e ficou na
dúvida. Para eles mesmos ou para as mulheres? Parou diante de uma
nordestina de rosto marcado por sulcos profundos e escolheu uma calcinha
vermelha, uma preta aberta na frente e duas de renda. “Se levar meia dúzia, ganha uma de brinde”,
disse a vendedora, com os olhos iluminados pela esperança. Como na
feira, pensou ele. Quem compra quatro pastéis leva um de brinde. Por
toda parte, promoções para segurar freguês.
Em lugar de calcinhas, pediu dois sutiãs e a vendedora mostrou-se agradecida. “Tomara que façam sucesso, que ela goste e o senhor volte.” Ela
goste! A vendedora não podia, nem de longe, prever as intenções dele.
Era uma idéia que não tinha ocorrido de repente, ali, diante do mar
colorido de peças íntimas. Foi almoçar no Ponto Chic, tomou dois
chopinhos, um antes do Bauru, outro depois, consultou o relógio e seguiu
para o cinema. Já havia uma fila, Mel Gibson tem um fã-clube no centro
da cidade. A sala estava fresca. Escolheu uma fileira central,
espectadores vieram sentar-se perto, ele trocou de lugar. Foi mudando
até localizar-se em um canto deserto.
Vibrou
com o Mel Gibson distribuindo porradas e tiros. Decidiu abrir o pacote
e, no escuro, não soube qual das calcinhas estava sendo retirada. Não
importava. Deixou a peça pendurada no braço das poltronas, pensou
melhor, apanhou um sutiã, jogou no chão e mudou de lugar. Era mais
completa a ação. Instalou-se num ponto estratégico e ficou à espera. O
filme terminou, as luzes acenderam-se, as pessoas começaram a sair.
Suspense. Será que ninguém veria as calcinhas? Uma mulher bateu os
olhos, virou-se para o companheiro, apontou. Os dois gargalharam: “Aqui foi quente. Aqui, sim, passou uma máquina mortífera.” Sentaram-se,
espantados e curiosos, para saborear reações. Um senhor deu com a
calcinha, reprovou com um gesto de cabeça. Não demorou para que se
formasse um grupo que ria, comentava e imaginava o que se teria passado
no escuro da sala. Alguém descobriu o sutiã no chão, os murmúrios
cresceram. O mistério aumentou.
Um
policial surgiu para ver o que acontecia. Chamou o lanterninha, um
velho manco. O homem contemplou as peças rendadas e ficou parado, sem
decidir o que fazer. Não teve coragem de pegar as peças. Sabe-se lá o
que tinha acontecido. Disse: “O faxineiro cuida disso.” O
seu rosto mostrava assombro e alegria. Algo de diferente acontecia na
mesmice das sessões. Seu trabalho era quase inútil, ninguém mais
precisava de um orientador no escuro. Permanecia no posto pela amizade
do exibidor, com quem começaria trinta anos atrás. Sempre de lanterna na
mão. Devia ser o último de uma categoria em extinção. As condições de
trabalho tinham piorado tanto, que ele era obrigado a comprar do próprio
bolso as pilhas para a lanterna. O que fazia com alegria, uma boa luz
era o seu orgulho.
O policial ficou exasperado: “Vejam que imortalidades se passam num cinema. Se eu pegasse o elemento! Chamem o gerente.” O que podia fazer o gerente? Suas atribuições não eram no escuro da sala. Situação para o lanterninha: “Eu?
Quer dizer que tenho de passar a sessão inteira varrendo a sala com a
lanterna? Vai ser uma bronca só. Além do mais, gastaria dez pilhas por
semana. Isso é com a policia, que fica assistindo a filme de graça.” O policial irritou-se: “Isso não pode ficar assim.” E o gerente: “O que vamos fazer?”
Calcinhas secretas II
A
nova sessão começou, o gerente voltou à sua sala, o lanterninha e o
policial passaram vinte minutos rodando pelos corredores, aproximando-se
dos casais. Postavam-se diante deles, ostensivamente; o lanterninha
iluminava-os, tentando surpreendê-los. O que provocou protestou de um
homem, que se levantou, interpelando-os duramente. Com medo, o
lanterninha retirou-se e o policial pareceu desistir. O homem que tinha
levado o pacote de calcinhas esperou dez minutos, rondou à procura de
outro lugar estratégico, repetiu a operação, deixando a calcinha à
vista. Mudou de lugar e outra vez colocou pistas falsas. Aguardou.
No
intervalo, as pessoas fizeram grupinhos diante das calcinhas espalhadas
e logo gerente, lanterninha, policial, faxineira e dois funcionários do
cinema correram, nervosos: “O
que está acontecendo? Se fosse uma sala de quinta, que exibisse pornôs,
eu entenderia. Mas esse é o último cinema do centro que conserva sua
dignidade.” O gerente colocou os dedos no nariz do policial: “Resolva o assunto. O senhor só assiste aos filmes numa boa, come cachorro-quente de graça, dorme lá atrás em cada sessão.”
O policial riu: “Pensa
que é meu chefe?" Deu as costas e foi ao hall, encostou-se no balcão da
antiga bombonnière, pediu um cachorro-quente completo. A mulher
reclamou: “Um
só por dia, por favor." Ele tinha vendido bombons e chocolates, balas e
dropes, mas tivera de mandar de ramo; escolheu sanduíches rápidos e
baratos. “O que está acontecendo lá dentro? O gerente ficou passado.” O policial riu: “O pessoal anda mandando brasa dentro da sala.”
O
homem que tinha levado as calcinhas contemplou, deliciado, o alvoroço,
desfrutou a perplexidade e imaginou a curiosidade de cada um. Teriam
assunto para os escritórios, os clientes, o jantar em casa. Pena que não
tivesse jornalista na platéia. Que boa idéia! Por que não telefonar
para alguns? Chamar o Merten, o Zanin Oricchio, o Ignácio de Araújo, o
Inimá Simões. O homem das calcinhas, diga-se como esclarecimento
necessário, adorava cinema, lia colunas, recortava críticas. Quem sabe o
Inimá escrevesse um livro: O erotismo nas salas?
No
dia seguinte, o homem das calcinhas mudou de cinema e refez a operação,
com sucesso. Foi repetindo a artimanha, percebendo gerente cada vez
mais intrigados. Deliciados, remuniciava-se na banca da nordestina de
rosto marcado, tinha simpatizado com a mulher. Ela, no entanto, não
entendia por que aquele homem comprava tantas calcinhas e sutiãs. Seria
um revendedor? Ou eram para uso próprio? Que tipo de uso? Quem era esse
homem? Um tarado?
Esgotados
os cinemas do centro, ele foi para o shopping. Os resultados foram
melhores. No primeiro dia, deu a maior repercussão. Um pai ia sentar-se
com as filhas, percebeu a calcinha no chão. Chamou o gerente, chamou
todo mundo, fez escândalo, chamou o administrador do shopping, gritou
que ia processar, retirou-se empurrando as jovens que riam, excitadas. E
o homem das calcinhas repetiu a operação na sala 2, sem tanto
estardalhaço, mas, de qualquer maneira, provocando igual assombro. O que
se notava era a decepção das pessoas que gostariam de ter visto o
acontecido. Numa segunda sessão, ele observou que quase ninguém prestava
atenção no filme, as pessoas ficavam olhando em volta, mudavam de
lugar, sentavam-se perto de casais, não importava a idade. Quando, ao
acender as luzes, encontravam as calcinhas e sutiãs, era um murmúrio de
frustração.
Percebeu
que aquelas salas começavam a lotar, todo mundo procurando resolver o
mistério das calcinhas que surgiam no escuro. Só que, com então, começou
a espalhar calcinhas nos banheiros de restaurantes, ônibus, metrô,
portas de cursinhos, escadas de emergência dos prédios, elevadores, por
toda parte. E foi gerando curiosidade. Gastava seu salário e
rejubilava-se porque as rádios e televisões começaram a comentar, os
jornais procuravam o casal misterioso que transava por toda parte. Houve
até mesa-redonda na TV com a Silvia Poppovic discutindo com bom humor a
moralidade vigente.
E
ele coleciona recortes, cola em álbuns. Interrompe a operação por um
mês, retoma em local inesperado, o assunto volta à tona. E de sua
janela, num apartamento da Praça Roosevelt, ele contempla a cidade que
jamais vai decifrar o enigma. E considerando-se um privilegiado, dono de
um segredo que intriga a todos, nem sente a dor da solidão em que vive e
já se impregnou nele.
Fonte:http:www.cronicando-cronicas.blogspot.com.br
Nota: o blog manteve a grafia original
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