Minha mãe é a minha filha. Preciso de lhe dizer que chega de bolo de
chocolate, chega de café ou de andar à pressa. Vai engordar, vai ficar
eléctrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.
Cuido dos seus mimos. Gosto de lhe oferecer uma carteira nova e presto
muita atenção aos lenços bonitos que ela deita ao pescoço e lhe dão um ar
floral, vivo, uma espécie de elemento líquido que lhe refresca a idade. Escolho
apenas cores claras, vivas. Zango-me com as moças das lojas que discursam
acerca do adequado para a idade. Recuso essas convenções que enlutam os mais
velhos. A minha mãe, que é a minha filha, fica bem de branco, vermelho, gosto
de a ver de amarelo-torrado, um azul de céu ou verde. Algumas lojas
conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro pessoas que sentem uma alegria
bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a Primavera ou só um fim-de-semana
fora, servem para que me lembre de trazer um presente. Pais e filhos são
perfeitos para presentes. Eu daria todos os melhores presentes à minha mãe.
Rabujo igual aos que amam. Quando amamos, temos urgência em proteger,
por isso somos mais do que sinaleiros, apontando, assobiando, mais do que
árbitros, fiscalizando para que tudo seja certo, seguro. E rabujamos porque as
pessoas amadas erram, têm caprichos, gostam de si com desconfiança, como creio
que é normal gostarmos todos de nós mesmos. Aos pais e aos filhos tendemos a
amar incondicionalmente mas com medo. Um amigo dizia que entendeu o pânico
depois de nascer o seu primeiro filho. Temia pelo azedo do leite, pelas
correntes de ar, pelo carreiro das formigas, temia muito que houvesse um órgão
interno, discreto, que disfuncionasse e fizesse o seu filho apagar. Quem ama
pensa em todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam
sem esta factura não amam ainda. Passeiam nos afectos. É outra coisa.
Ficar para tio parece obrigar-nos a uma inversão destes papéis a dada
altura. Quase ouço as minhas irmãs dizerem: não casaste, agora tomas conta da
mãe e mais destas coisas. Se a luz está paga, a água, refilar porque está tudo
caro, há uma porta que fecha mal, estiveram uns homens esquisitos à porta, a
senhora da mercearia não deu o troco certo, o cão ladra mais do que devia, era
preciso irmos à aldeia ver assuntos e as pessoas. Quem não casa deixa de ter
irmãos. Só tem patrões. Viramos uma central de atendimento ao público. Porque
nos ligam para saber se está tudo bem, que é o mesmo que perguntar acerca da
nossa competência e responsabilizar-nos mais ainda. Como se o amor tivesse
agentes. Cupidos que, ao invés de flechas, usam telefones. E, depois,
espantam-se: ah, eu pensei que isso já tinha passado, pensei que estava
arranjado, naquele dia achei que a doutora já anunciara a cura, eu até fiz uma
sopa, no mês passado até fomos de carro ao Porto, jantámos em modo fino e tudo.
Quem ama pensa em
todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta
factura não amam ainda
Quando passamos a ser pais das nossas mães, tornamo-nos exigentes e
cansamo-nos por tudo. Ao contrário de quem é pai de filhas, nós corremos
absolutamente contra o tempo, o corpo, os preconceitos, as cores adequadas para
a idade. Somos centrais telefónicas aflitas.
Queremos sempre que chegue a Primavera, o Verão, que haja sol e aqueçam
os dias, para descermos à marginal a ver as pessoas que também se arrastam por
cães pequenos. Só gostamos de quem tem cães pequenos. Odiamos bicharocos
grotescos tratados como seres delicados. O nosso Crisóstomo, que é
lingrinhas, corre sempre perigo com cães musculados que as pessoas insistem em
garantir que não fazem mal a uma mosca. Deitam-nos as patas ao peito e
atiram-nos ao chão, as filhas que são mães podem cair e partir os ossos da
bacia. Porque temos bacias dentro do corpo. Somos todos estranhos. Passeamos
estranhos com os cães na marginal e o que nos aproveita mesmo é o sol. A minha
mãe adora sol. Melhora de tudo. Com os seus lenços como coisas líquidas e
cristalinas ao pescoço, ela fica lindíssima. E isso compensa. Recompensa.
Comemos o sol. Somos, sem grande segredo, seres que comem o sol. Por
isso, entre as angústias, sorrimos.
Fonte:https://www.publico.pt/sociedade/noticia/cuidar-dos-pais-1690432
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.