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Um Passado Imaginário, Antonio Falcão

O cineasta Woody Allen tem em Meia-noite em Paris uma das suas melhores realizações. O filme conta que um romancista americano encantado pela capital francesa, após ouvir as 12 badaladas da meia-noite, em 2010 cai na fantasia de madrugar com intelectuais e artistas que fizeram na década de 1920 os parisienses anos loucos. Assim, ele “convive” em viagens fantásticas com Scott Fitzgerald, Hemingway, Gertrude Stein, Cole Porter, Buñuel, Toulouse-Lautrec, Dali e Picasso, pra falar só de alguns. E nesse alucinante realismo mágico decide ficar na cidade para sempre.
        
 Sem ser passadista, eu vi com prazer esse filme 3 vezes. E recomendo Meia-noite em Paris a quem tem bom gosto e algum conhecimento da geração perdida daqueles anos 20. Mas um amigo, que é cinéfilo de carteirinha e escreve ficção literária, assistiu essa obra de Allen em 9 sessões, curtindo cada uma no maior alumbramento. A partir da experiência, porém, ele passou a ter sonhos centrados na tentativa de inventar um passado que não existiu e isso veio a perturbá-lo. Como exemplo, diz que certa vez, dormindo, encontrara o escritor carioca Lima Barreto, que, além de brilhante, era bêbado contumaz e neurótico. Para variar, Lima tomando cachaça olhou o cinéfilo sem interesse. E, de cara, pediu para não ser incomodado, pois ali estava à espera de seus personagens recém-enamorados: Policarpo Quaresma, o patriota, e Clara dos Anjos, a mulata que foi vítima do racismo brasileiro. Curioso em saber desse namoro, o amigo inquiriu se o escritor via incesto nisso. “Não, pois, embora ambos sejam crias minhas, não são irmãos e vivem em livros distintos – um destes, por sinal, póstumo.” Aí, o passadista pediu permissão para escrever sobre os dois e Lima: “Não posso autorizar ou proibir. Apenas temo que você deforme meus personagens. Se quer uma ideia mais original, sem que Graciliano Ramos e Machado de Assis saibam, escreva sobre o acasalamento da cadela Baleia com o cão Quincas Borba. Digamos, ela querendo levá-lo pro cangaço e ele a fim de ver a cachorra como passista de uma escola de samba.”

O amigo ficou de pensar, agradeceu a ideia e acordou com a sensação de que, tal qual Lima Barreto, tinha um parafuso a menos e se sentia interno no mesmo hospício onde o genial escritor carioca esteve. Daí, desistiu de criar esse passado literário com lances malucos. Ainda bem.

(Texto publicado originalmente no Jornal do Comércio, Recife)

Imagens:
1) - cartaz de divulgação do filme usa  Starry Night  de Van Gogh  ao fundo do Rio Sena
2) cachorra Baleia de Ademir Martins (1963)
3) Quincas Borba com seu cão do mesmo nome. Desconheço o autor.

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