Pular para o conteúdo principal

De Mel a Pior, Fernando Sabino


- Qual é a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo adequar? - pergunta-me ele ao telefone.
- Nós adequamos - respondo com segurança.
- Primeira do singular - insiste ele.
- Espera lá, deixe ver. Com essa você me pegou.
E arrisco vacilante:
- Eu adéquo?
- Não, senhor.
- Eu adeqúo? Não pode ser.
- E não é mesmo.
- Então como é que é?
- Quer dizer que você não sabe?
- Deixe de suspense. Diga logo.
- Não tem. É verbo defectivo.
- E você me telefonou para isso? Verbo defectivo. Tudo bem. Eu não teria mesmo oportunidade de usar esse verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Nunca me adéquo a questões como esta. Presente do indicativo ou indicativo do presente? - é a minha vez de perguntar. - No nosso tempo era indicativo presente.
E é sua vez de não saber. Desculpa-se dizendo que andaram mudando tanto a nomenclatura gramatical, que a gente acaba não sabendo mais nada.
- E o verbo delinqüir? - torna ele.
- Que é que tem o verbo delinqüir? - quero saber, cauteloso.



- A primeira do singular?
- Não tem. Também é defectivo. Mas ele é teimoso:
- E se um criminoso quiser dizer que não delinque mais?
- Se usar esse verbo, já delinqüiu. - E acrescentou, num tom de quem não sabe outra coisa na vida:- Além do mais, leva trema no u. Para que se fale delincuir, que é a pronúncia correta.
- Quem fala delinqir, sem o u, vai ver é da polícia.
- Ou quem fala tóchico, como diz Millôr.
- O Millôr fala tóchico?
- Não. O Millôr é que disse que quem fala… Ora, deixa pra lá.
Ele volta à carga:
- O trema já não foi abolido?
- Que abolido nada. Aboliram tudo, menos o trema
- Por falar nisso, outro verbo defectivo.
- Qual?
- Abolir: não tem primeira do singular.
- Como não tem? -reajo - Eu abulo.
- Neste caso seria eu abolo.
- Coisa nenhuma. Eu abulo, sim senhor. - E invoco a autoridade de quem sabe o que diz:- Não é eu expludo? Pelo menos o Figueiredo não me deixa mentir.
- O Cândido ou o Fidelino?
- O João mesmo. O presidente. Ele falou expludo e não explodo.
- Se essa regra vale, deveria ser eu cumo, eu murro, eu murdo…
- Então me diga uma coisa: Você sabe qual é a primeira do singular do verbo parir no indicativo?
- Ninguém pare no indicativo.
- Pare, e em todos os tempos, meu velho.
- Esse quem não corre o risco de usar sou eu.
- Pois então fique sabendo: é simplesmente igual à primeira pessoa do singular do verbo pairar.
- Eu pairo?
- É isso aí. Uma senhora que tem muitos filhos pode perfeitamente dizer: eu pairo um filho por ano.
- Co’s pariu.
- Se não quiser acreditar, não acredite. É a vez dele:
- Você sabe qual é o plural de mel?
- Já vem você. Mel não tem plural.
- Como não tem? Tem até dois. - E me conta que outro dia um entendido em mel fazia uma prelação sobre o assunto na televisão. No que saiu do singular para se meter no plural, quebrou a cara:
- Acabou falando que existem muitos mels diferentes.
- E não existem?
- Existem. Mas não mels. Com essa ele se deu mal.
- Se deu mel então. - Era a asa da imbecilidade começando a ruflar aos meus ouvidos:- Ou você vai me dizer que mel também é verbo defectivo?
- Perguntei a uma amiga minha que entende.
- De mel?
- Não : de plural. Ela confirmou: tanto pode ser méis como meles. Mels é que não.
A esta altura o mentecapto fala mais alto dentro da minha cabeça:
- Dos meles, o menor.
Como ele não responde, acrescento:
- Até logo. Melou o assunto.
E desligo o telefone.



Nota: Esta crônica  é de 1983 (livro:O Gato Sou Eu), antes, da reforma ortográfica que aboliu o trema.

Comentários

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard