Mais que um passa-tempo
O que ia fazer ali, ninguém entendia muito bem. Nem os amigos mais próximos, nem a moça que tomava conta da biblioteca. No início, era tímida. Chegava como quem não quer nada, me perdia no meio das estantes e esquecia que o tempo controlava a vida. Aos poucos fui ganhando intimidade e me apresentando aos autores. “- José de Alencar, eu sou a Cris.” Escolhia os livros com curiosidade inocente, lendo alguns trechos sem recomendação. Lia e ia montando minha própria lista de indicações.
A biblioteca era quase no porão e as largas janelas não eram suficientes para acabar com o cheiro de mofo. A alergia atacava, mas aquele clima de coisa antiga e cheia de segredos me atraía também quando estava triste, cansada, aborrecida ou simplesmente com preguiça de correr pelo pátio, subir árvores ou pular elástico. Escolhia cuidadosamente os livros que levaria em minha fuga de casa - Sempre que brigava eu fugia de casa para uma cabana construída com lençóis no meu quarto. Me “mudava” levando apenas um abajur, meu travesseiro, um colchonete e uma pilha de livros.
Não, eu não era uma criança solitária. Pelo contrário. Já cultivava amizades que durariam décadas. Vivia cercada de outras crianças, tão barulhentas e criativas quanto eu. Andava de bicicleta, brincava de pique, participava de ginganas e ensaiava coreografias para shows. Mas gostava desses momentos de solidão que eu considerava “adulto”. Achava que no ano 2000 eu seria uma velha de 24 anos. Planejava ser astronauta, cantora (risos), milionária, espiã, piloto de teste ou trabalhar no Carrefour (queria andar de patins o dia inteiro – que emoção seria!). Entre as cem vidas que tinha a escolher, gostava de pensar que poderia viver todas. Mas, no instante seguinte, recuava mil passos. E então, era como se não pudesse viver nem a minha.
A bibliotecária vivia numa dúvida cruel entre me podar as leituras ou incentivar o gosto precoce. Achava que alguns livros só poderia ler no segundo grau – eu estava na quarta série. Me mudei no ano seguinte e novamente comecei minha jornada: nova cidade, novas estantes, novas brigas. A bibliotecária do colégio não entendia minha angústia, mas a biblioteca pública era na esquina da minha casa, ou a minha casa era na biblioteca pública. Ali ninguém vigiava. Que estranho era alguém amolar quem só queria ler livros! O que poderia haver de tão importante em uma garota lendo um livro?
Tinham medo que o desgosto que me levava à biblioteca fosse maior do que simplesmente orgulho ferido. Algo que perpassava todo o resto e que não sabiam explicar. Um olhar triste de nostalgia, encarando a fresta por onde lhe escapava a alma. Até os momentos mais alegres vinham acompanhados de certa melancolia - saudade deslocada no tempo. Não conseguiam ver que eu estava apenas vivendo a história alheia. Eu era feliz, era normal... só tinha um gosto peculiar pela leitura.
Tudo isso é só para contar que ontem ganhei um livro. Uma simples quinta-feira de prova, e eles ainda lembraram de mim. Rapazes, very thanks!!! Estarei mais um vez mergulhando em uma viagem pelo mundo. Conhecendo novas pessoas, novas vidas, novos lugares, um novo aprendizado. Mas volto para almoçar com vocês.
(Cedido na íntegra pela Cris)
O que ia fazer ali, ninguém entendia muito bem. Nem os amigos mais próximos, nem a moça que tomava conta da biblioteca. No início, era tímida. Chegava como quem não quer nada, me perdia no meio das estantes e esquecia que o tempo controlava a vida. Aos poucos fui ganhando intimidade e me apresentando aos autores. “- José de Alencar, eu sou a Cris.” Escolhia os livros com curiosidade inocente, lendo alguns trechos sem recomendação. Lia e ia montando minha própria lista de indicações.
A biblioteca era quase no porão e as largas janelas não eram suficientes para acabar com o cheiro de mofo. A alergia atacava, mas aquele clima de coisa antiga e cheia de segredos me atraía também quando estava triste, cansada, aborrecida ou simplesmente com preguiça de correr pelo pátio, subir árvores ou pular elástico. Escolhia cuidadosamente os livros que levaria em minha fuga de casa - Sempre que brigava eu fugia de casa para uma cabana construída com lençóis no meu quarto. Me “mudava” levando apenas um abajur, meu travesseiro, um colchonete e uma pilha de livros.
Não, eu não era uma criança solitária. Pelo contrário. Já cultivava amizades que durariam décadas. Vivia cercada de outras crianças, tão barulhentas e criativas quanto eu. Andava de bicicleta, brincava de pique, participava de ginganas e ensaiava coreografias para shows. Mas gostava desses momentos de solidão que eu considerava “adulto”. Achava que no ano 2000 eu seria uma velha de 24 anos. Planejava ser astronauta, cantora (risos), milionária, espiã, piloto de teste ou trabalhar no Carrefour (queria andar de patins o dia inteiro – que emoção seria!). Entre as cem vidas que tinha a escolher, gostava de pensar que poderia viver todas. Mas, no instante seguinte, recuava mil passos. E então, era como se não pudesse viver nem a minha.
A bibliotecária vivia numa dúvida cruel entre me podar as leituras ou incentivar o gosto precoce. Achava que alguns livros só poderia ler no segundo grau – eu estava na quarta série. Me mudei no ano seguinte e novamente comecei minha jornada: nova cidade, novas estantes, novas brigas. A bibliotecária do colégio não entendia minha angústia, mas a biblioteca pública era na esquina da minha casa, ou a minha casa era na biblioteca pública. Ali ninguém vigiava. Que estranho era alguém amolar quem só queria ler livros! O que poderia haver de tão importante em uma garota lendo um livro?
Tinham medo que o desgosto que me levava à biblioteca fosse maior do que simplesmente orgulho ferido. Algo que perpassava todo o resto e que não sabiam explicar. Um olhar triste de nostalgia, encarando a fresta por onde lhe escapava a alma. Até os momentos mais alegres vinham acompanhados de certa melancolia - saudade deslocada no tempo. Não conseguiam ver que eu estava apenas vivendo a história alheia. Eu era feliz, era normal... só tinha um gosto peculiar pela leitura.
Tudo isso é só para contar que ontem ganhei um livro. Uma simples quinta-feira de prova, e eles ainda lembraram de mim. Rapazes, very thanks!!! Estarei mais um vez mergulhando em uma viagem pelo mundo. Conhecendo novas pessoas, novas vidas, novos lugares, um novo aprendizado. Mas volto para almoçar com vocês.
(Cedido na íntegra pela Cris)
Maravilhosa crõnica, um primor! Parabéns, Cris! Sua sensibilidade foi perfeitamente reconhecida no texto! Você é um caso raro!Parabéns a Regina pela generosidade, mais uma vez!
ResponderExcluirSugiro que façamos um espaço na LE com registros de descobertas da leitura...
Posso usar o texto numa Comunidade que fiz para leitores de uma escola pública?
Elô
Elô,
ResponderExcluirCreio que a Cris dará permissão para usá-lo, porém é melhor fazer contato diretamente com ela pela comunidade.
Obrigada pela visita,
beijo
Regina