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Mostrando postagens de fevereiro, 2019

Crônica de Carnaval, Machado de Assis

      Faleci ontem, pelas sete horas da manhã. Já se entende que foi sonho; mas tão perfeita a sensação da morte, a despegar-me da vida tão ao vivo o caminho do céu, que posso dizer haver tido um antegosto da bem-aventurança.       Ia subindo, ouvia já os coros de anjos, quando a própria figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha uma ânfora nas mãos, onde espremera algumas dúzias de nuvens grossas, e inclinava-a sobre esta cidade, sem esperar procissões que lhe pedissem chuva.   A sabedoria divina mostrava conhecer bem o que convinha ao Rio de Janeiro; ela dizia enquanto ia entornando a ânfora:       — Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que traz toda a restauração. Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão não por ser melhor, mas por ser a própria quadra antiga, a do costume, a do calendário, a da tradição, a de Roma, a de Veneza, a de Paris. Com temperatura alta, podem vir transtornos de saúde, — algum aparecimento de febre, que os seus vizinho

Misticismos, Cora Coralina

A terra é templo. O lavrador é semeador. A lavoura é altar. O grão é oferta.  O lavrador e sua fala econômica: -Se Deus quisé. -A Deus querê. -Graças a Deus. Repostando tudo a Deus - quando lucra. Quando perde: - Seja feita a vontade de Deus. Assim atravessa a vida, gera filhos sem restrições. Nada sabe de explosão demográfica. Pobres, disse Jesus Sempre os tereis em vós Imagem: Imprensa 1  

Mané-Paciência, Olegário Mariano

Mané-Paciência é triste, esquelético e bambo. Barba sem côr, pele rugosa, olhar sem brilho. Se a vida transformou seu corpo num molambo, O infortúnio o adotou como se adota um filho. Pede esmolas, rodando entre as mãos a sacola. O grande chapelão lhe aumenta o ar de inocência. Se alguém dêle sorri quando lhe nega esmola, Mané- Paciência se descobre e diz: paciência... Mas, através daquele corpo, nas encolhas, Vive em sua humildade, uma alma nordestina Que se debruça como uma árvore sem fôlhas Procurando esconder aquela humana ruína. Mané-Paciência é bem  a paisagem nativa, O anônimo infortúnio e a miséria sem nome. Tanto esplendor no céu de uma chama tão via E debaixo do céu tanta gente com fome!

Precisava Ter Um Nome, Marin Sorescu

Tília L . Eminescu não existiu. Existiu apenas um formoso país a uma margem de mar onde as ondas fazem chacos brancos como uma barba despenteada de imperador. E as águas entre as árvores em corredeira onde a lua tinha seu ninho gigante. e, sobretudo, existiram homens simples que se chamavam: Mircea, o velho,                              Stefan, o Grande, ou ainda mais simples: pastores e lavradores, que gostam de declamar à noite, em torno da fogueira, poesias - "Mioritza","Luceafarull"e "A Terceira Epístola". Mas, porque ouviam continuamente ladrando em seus quintais os cães, partiam, a se debater com os tártaros e com os avaros e com os hunos e com os polacos e com os turcos.

A Cinderala Mudou de Ideia

A Cinderela tinha tanta, tanta vontade de ir a festa...                                                                                   que finalmente conseguiu.       Na historia que conheci, Cinderela quer ir a festa pelo evento em si. O príncipe que traz o sapatinho de cristal e com quem ela se casa, não é o personagem principal, mas é o objetivo desta.  Explicando: o homem é o prêmio. O fato de ser príncipe e bonito (todos os príncipes das histórias são bonitos) é só um reforço, uma camada de gliter para dar brilho. O príncipe é a recompensa pelos mal tratos que a sofria. Casar era um objetivo. "minhas irmãs e madrasta me exploraram, maltrataram humilharam, mas quem conseguiu casar fui eu. 

Não Era Amor, Eberth Vêncio

           Uma mosca pousa sobre a glande ainda úmida. Possui uma carapaça brilhante, verde-metálica. Quem com ferro fere com ferro será ferido? Observo-a, desprovido de maior encanto. A simples curiosidade já contenta a mim. Qual o seu próximo passo? Aimée dormita sobre o meu peito. Sinto os pelos crisparem. Indícios de que a saliva escorre, vaza pela sua boca de lábios delicados que gritam escândalos, obscenidades. Mosquitinhos-de-banana dão o ar da graça, flutuando em voos circulares sobre a sua cabeça. Ela é doce como uma banana madura.      Tenho planos de não afugentar a minha mosca. Estico lentamente o braço esquerdo até alcançar os óculos que me expiam da escrivaninha. Alguém aí ainda usa escrivaninhas ao lado da cama? Sou um homem antiquado, maduro como uma banana, metido com uma mulher muito mais jovem, muito mais louca, igualmente imatura. Serei também um inseto? Quisera passar pela metamorfose de que nos fala Kafka e ser pisoteado por pés tão cativantes.

Homens Néscios, Sóror Juana

Homens néscios a acusar às mulheres sem razão, sem ver que são a ocasião do que as estão a culpar. ..Se com ânsia sem igual estimulam seu desdém, por que querem que obrem bem se as incitam para o mal? ..Combatem sua resistência, e em seguida com maldade dizem que foi leviandade o que fez sua insistência. ..Querem com vil presunção achar a que lhes condiz: em compromisso, Taís, e Lucrécia em possessão.

Cantoria, Cora Coralina

Meti o peito em Goiás e canto como ninguém. Canto as pedras, canto as águas, as lavadeiras também. Cantei um velho quintal com mudada de pedra. Cantei um portão alto com escada caída. Cantei a casinha velha de velha pobrezinha. Cantei colcha furada estendida no lajedo; muito sentida, pedi remendo pra ela. Cantei mulher da vida conformando a vida dela.

Prelúdio, Regina Ruth Rincon Caires

Pela escuridão do quarto, imagina ser noite.  Ou madrugada... Perdera a noção do tempo. Foram muitas mortes, muitos renascimentos. Tanta aflição, tantas dores, tanta luta! Mas, agora, vindo não se sabe de onde, é invadido por um deleitoso sossego.   No silêncio, entrecortado pelo gotejar do soro no equipo, os pensamentos, de maneira incansável, se avolumam, se atropelam como se disputassem uma corrida derradeira. E no peito, o retumbe do coração mais parece o bater das asas inexperientes do menino passarinho. Sabe que está longe disso.