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Mostrando postagens de maio, 2018

Os Rios de Minha Infância, Marcos Cirano

       Quando eu era criança os rios eram todos feitos de areia e água: quase nada mais. E tinham peixes. E serviam para o banho. Serviam também para a minha mãe lavar roupas, batendo cada peça num batedor e depois botando toda a roupa numa pedra grande para quarar.      Quando eu era criança os rios tinham água de beber (isso, claro, quando nenhuma seca chegava para infernizar o Sertão) e a gente bebia aquela água com muito gosto e sem receio algum. Porque todo s os rios eram feitos de areia e água: quase nada mais.      Quando eu era criança os adultos respeitavam os rios. Diziam: “Isso é uma obra de Deus”, toda vez que os rios botavam água numa correnteza tão forte que nenhum homem era capaz de vencer. E ninguém se atrevia aterrar um rio: era contra a Natureza.      Quando eu era criança nenhum rio fedia. Pelo contrário: todos os rios tinham um cheiro bom. Um cheiro (é verdade) que eu nunca soube decifrar e, certa vez, perguntei ao meu avô e ele me olhou e dis

Foguete, Roque Ferreira e Jota Velloso. Voz: Maria Bethania e Dona Canô

Tantas vezes eu soltei foguete Imaginando que você já vinha Ficava cá no meu canto calada Ouvindo a barulheira Que a saudade tinha É como diz João Cabral de Mello Neto Um galo sozinho não tece uma manhã Senti na pele a mão do teu afeto Quando escutei o canto de acauã A brisa veio feito cana mole Doce, me roubou um beijo Flor de querer bem Tanta lembrança este carinho trouxe Um beijo vale pelo que contém Tantas vezes eu soltei foguete Imaginando que você já vinha Ficava cá no meu canto calada Ouvindo a barulheira Que a saudade tinha Tirei a renda da naftalina Forrei cama, cobri mesa E fiz uma cortina Varri a casa com vassoura fina Armei a rede na varanda Enfeitada com bonina Você chegou no amiudar do dia Eu nunca mais senti tanta alegria Se eu soubesse soltava foguete Acendia uma fogueira E enchia o céu de balão Nosso amor é tão bonito, tão sincero Feito festa de São João

O Gato Vaidoso, Monteiro Lobato

     Moravam na mesma casa dois gatos iguaizinhos no pêlo mas desiguais na sorte.      Um, amimado pela dona, dormia em almofadões. Outro, no borralho. Um passava a leite e comia em colo. O outro, por feliz, se dava com as espinhas de peixe do lixo.      Certa vez, cruzaram-se no telhado e o bichano de luxo arrepiou-se todo, dizendo:     – Passa ao largo, vagabundo! Não vês que és pobre e eu sou rico? Que és gato de cozinha e eu sou gato de salão? Respeita-me, pois, e passa ao largo…      – Alto lá, senhor orgulhoso! Lembra-te de que somos irmãos, criados no mesmo ninho.        – Sou nobre. Sou mais que tu!      – Em quê? Não mias como eu?      – Mio.      – Não tens rabo como eu?      – Tenho.     – Não caças ratos como eu?     – Caço.     – Não comes rato como eu?     – Como.     – Logo, não passas dum simples gato igual a mim. Abaixa, pois a crista desse orgulho e lembra-te que mais nobreza do que eu não ten

Fico Pleno de Amor Ao Ver-te, Lua, e Me Matas Com O Jeito Que Tu Brilhas, César Feitoza

Bela Lua quis fazer-te estes versos Decassílabos brancos de pureza Pois dos astros que têm a natureza És tu, Lua o mais lindo do Universo Ao falar das estrelas desconverso Ao olhar os quasares, Brancas ilhas Separados por milhares de milhas Minha “Astra” mais perto é quem flutua Fico pleno de amor ao ver-te, Lua E me matas com o jeito que tu brilhas Já cantei que teu brilho me tonteia Fiz-te nova, minguante e fiz crescente Quero agora através do meu repente Te encantar e também fazer-te cheia Tu não vês que teu lume me clareia Me entorpece e me faz perder a trilha Viro cão seguidor da tua matilha Me deslumbro ante a beleza tua Fico pleno de amor ao ver-te, Lua E me matas com o jeito que tu brilhas Se estás triste eu padeço, sofro e choro Se alegre, dou pulos de folia Pois teu sorriso branco me alumia E ao ver tua alegria eu comemoro Pra não te ver chorar eu peço e imploro Sou palhaço, provoco, boto pilha E se meu coração por ti fervilha Faço versos

Uma Italiana na Suíça, Clarice Lispector

          Rosa perdeu os pais quando era pequena. Os irmãos se espalharam pelo mundo e ela entrou para o orfanato de um convento. Lá levava uma vida sóbria e dura com as outras crianças. Durante o inverno o grande casarão permanecia frio, e os trabalhos não se interrompiam.       Ela lavava roupa, varria os quartos, costurava. Enquanto isso as estações se sucediam. Com a cabeça raspada e o longo vestido de fazenda grosseira, às vezes, com a vassoura na mão, espiava pelos vidros da janela. Outono era a estação de que mais gostava porque não era preciso sair para vê-lo: atrás dos vidros as folhas caíam amareladas no pátio, e isso era o outono.      Nesse convento suíço, quando um homem pisava no patamar, lavava-se o chão e queimava-se álcool em cima. Depois vinha de novo o inverno, e as mãos se avermelhavam, abriam-se em feridas, a cama gelada impossibilitava o sono, e criava sonhos acordados.       No dormitório escuro, com os olhos abertos sobre o lençol, ela espiava os

João de Barro, O Construtor - Andrade Lima

Em todo canto tem João, Mas de barro só na mata. E o João de barro retrata Muito bem a construção. Aprendeu toda lição E sem falar dialeto Faz seu trabalho completo E ninguém vê rachadura... Sem cursar arquitetura João de barro é arquiteto! Ele busca no barreiro E traz o barro traçado. Pelo bico é transportado E não erra o seu roteiro. Sem ter colher de pedreiro Reboca o piso e o teto. Faz um portal sem ser reto E não erra na espessura. Sem cursar arquitetura João de barro é arquiteto! Sem contratar engenheiro Faz sala, quarto e dispensa E o alvará de licença Deus envia sem carteiro. Escolhe um pau de pereiro E executa seu projeto. A natura é seu decreto E a parede com textura. Sem cursar arquitetura João de barro é arquiteto! Andrade Lima   Em Teresina PI, 20/11/2016. Imagem: Blog Focado em Você

O Pedaço de Pão com Pasta de Goiaba!, Magdala Valença

      Ela sentava-se muitas vezes numa cadeira de baloiço. Seus frágeis braços frágeis descansando na madeira, seu cabelo sempre amarrado e nesses olhos castanhos profundos, um olhar de tristeza. Sempre que eu a ia visitar, não tinha a certeza do que dizer e tinha cuidado para não fazer algo que a pudesse perturbar. Mas ela era gentil, atenciosa, consciente das nossas necessidades. Em algum momento durante o dia ela nos ofereceu um lanche. O eng raçado é que foi o momento culminante da nossa relação distante.      Acontece que foi esse momento para todos os nossos netos. Um pedaço de pão francês com pasta de goiaba ou manteiga misturada com açúcar. Delicioso em qualquer medida padrão de como os lanches vão e muito apreciados. Eu ainda me lembro de seus modos, seus modos aparentemente indiferentes, mas eu respeitava isso e nunca tentei pressionar meus sentimentos nela. Não havia necessidade de fazer tais coisas porque o amor não se restringe a um conjunto específico

Serenata do Adeus, Vinícius de Moraes. Voz: Clara Nunes