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Eu Conto Um Conto Por Semana - 4


O Quase-Sonho-Do-Jovem-Poeta-Que-Não-ChoraEvaldo

Pela terceira noite ele estava diante da Máquina fria e sem sentimentos. Seus olhos como os de uma coruja, brilhavam contra aquela Janela maldita. Eram três noites e nenhuma palavra tinha tomado forma. Os sonhos do jovem poeta estavam adormecidos, assim como ele.
Ao longe uma campainha tocava e era Ela: o mundo lá fora gritando insanamente, Eu estou aqui. Ele era um com a Máquina que sorvia cada gota de vida que lhe restava. O calor atordoante abraçava-o como sua Musa, aquela que preferiu a brisa.
Sim, ele morria. Era um esforço tremendo olhar para outro lugar além da Janela, maldita Janela. Um gole d'água, qualquer coisinha para engolir. E a Janela. Sempre a Janela. Seu nome, você me pergunta. Não sei, respondo. A pena corre pelo papel, o meu, não o dele.
O jovem poeta esqueceu o papel. Há quanto tempo ele não mergulha a pena no tinteiro e assim desenha sua história? Ele não tem mais história. Sua Musa partiu e por um tempo ele amou a si. Agora nem isso. Viu outras musas através da janela, nenhuma como a outra.
Suas mãos estavam frias sobre a pena da modernidade, apesar do quente e sufocante ar de verão. O monstro com sua máscara de Janela sorria para o jovem poeta. Uma... duas.... três lágrimas escorriam pelo rosto triste. Os olhos melancólicos começando a latejar.
A boca se abre, agora o monstro escancara suas presas e o jovem poeta, bem o jovem poeta parece dormir. Ele não vê que o monstro vai comê-lo. O abajur se apaga. Na verdade automaticamente o braço de nosso amigo se estica e apaga o abajur. Mas ele ainda brilha, o monstro brilha multicolorido enquanto os dedos do jovem poeta valsam freneticamente sobre a pena da modernidade.
Ao longe a campainha toca, lembrando ao jovem poeta que existe o mundo la fora. O vento sopra e em um estalo,seco, a porta do quarto se fecha.
O monstro não bebe as lágrimas do jovem poeta. Não, ele deixa que, cada uma, atrás da outra, escorram pelo chão. Um sacrifício para sabe-se lá que deus infernal. É, o monstro deixa que o calor, seco e sufocante, esse sim beba as lágrimas do poeta.
Um estalo. O segundo nessa noite. O vento mais forte que antes e o poeta não chora, não mais. Agora, gota-a-gota, o céu debulha suas próprias lágrimas. A noite tempestuosa é banhada de luz, o terceiro estalo. Dedos valsando freneticamente; a pena e o nanquim trancados no armário. “O poeta não chora”, escreve nosso jovem poeta. Esse poeta não chora, grito Eu!

Enquanto esperava, a hora exata de se despedir ele que trazia consigo um cheiro acre de solidão, seu corpo tremia. Não devido ao tempo, não! Apesar de não ser dia, de não brilhar o sol sobre seus ombros soprava uma brisa morna, carregada de tensão. E era isso, a tensão trazida pelo vento, nascida em seu próprio ser; que seja. A tensão era a causa dos arrepios.
Doze terríveis badaladas. Explosão, a corda tencionada ao máximo, como a lira com a qual Orfeu emocionou Hades. A corda assumiu, por sua conta e risco, a tensão do ambiente. A brisa? Cessada de todo. Arrepios que nada diziam. No céu, exatamente sobre sua cabeça, uma laranja gorda e suculenta refletia os raios que em outro momento teriam aquecido o lugar.
O mármore que cobria o piso da capela estava úmido, um murmúrio procurava abafar-se diante dos anjos de olhar repreendedor. O pranto calado buscava sobrepor-se aos boatos. Pobre alma perdia, ela que não teria acesso à comunhão, que não compartilharia do corpo nem tomaria o sangue. Seus olhos cerrados eram os do poeta, aquele que não chora.
Operários braçais, servos da morte ainda que vivos, baixavam as cordas, uma mão fechada abria-se, e dela, o pó fazia-se cobertura. O mármore dessa vez aquecido, incontínuo, irregular. Os anjos sofríveis regendo o coro celestial, infernal se quiser. Assim como o mármore, como a tensão... Assim a Laranja.... não só um espelho, explodindo em chamas e seus cítricos raios espalhando-se sobre eles.
Pasmo o olhar, sobre um pequeno altar, destinado a não se sabe qual deus, restos de cera. Testemunha da fé, daquele que se via preso. Daqueles que viram tensos, daquele que viram tencionando a corda. Sobre o altar, além da cera, uma caixa.
Vazia!

Meu grito precede o quarto estalo que poderia ser, digamos, a quarta trombeta do apocalipse.
Quem grita agora é o jovem poeta, desesperado. Seu monstro dorme o sonho dos justos. “O poeta não chora”, grita deixando escapar a pena por entre seus longos dedos. Três noites sem uma única palavra e na quarta delas, isso. Uma noite de linhas inspiradas pelo ralo. O quase-sonho-do-jovem-poeta, morto!
Relutantemente ele levantou seus olhos, agora fixos no armário e não mais na janela, que não passava de uma caixa sobre seu antigo altar. Curtos e apressados foram seus passos, aqueles mais doídos que já caminhara. Um castiçal sobre o altar e o armário aberto.
O jovem poeta que não chora agora é quase um dragão. Mas não cospe fogo, apenas fumaça. Esse é o passado meus caros. O passado do jovem poeta, ainda mais jovem. Timidamente a pena caminha sobre o papel. O quase-sonho parece tomar forma, não como antes, ou seria depois?
Sem velas no altar e a Janela fechada. O jovem poeta que não chora, novamente desesperado. A tinta do frasco seca, e a caixa... continuava Vazia!

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